O Cancioneiro Ibérico em José de Anchieta - Um Enfoque Musicológico

Rogério Budasz


3. Conclusão

Os documentos atualmente disponíveis indicam que os aspectos mais destacados da atividade musical de Anchieta compreendiam o ensino de orações e hinos traduzidos em tupi e a composição de letras e preparação de cantigas adaptadas a melodias populares ibéricas, muitas destas preservadas no manuscrito ARSI OPP NN 24. O estudo das referências musicais contidas neste documento e das correspondências verificadas entre suas poesias e canções e danças ibéricas contribui para o estabelecimento de um repertório de músicas possivelmente executadas no Brasil do século XVI.

Estas correspondências nos habilitam ainda a identificar de forma mais clara aqueles elementos tão comprometedores intuidos por Eduardo Portella, que sugerem uma possível dívida ou ligação entre a obra de Anchieta e o cancioneiro popular.

Em parte, a influência já tem sido comprovada em estudos abordando o emprego de formas tradicionais de estrutura e versificação. Prosseguindo nesta direção, observamos que uma das técnicas preferidas de composição empregadas pelo jesuíta envolve a utilização de romances, vilancicos e cantigas populares como base para a construção de novas versões de caráter religioso. A lírica de José de Anchieta enquadra-se assim no contexto da poesia vertida ao divino, fenômeno amplamente conhecido e estudado na literatura espanhola do século XVI, e que apresentou ramificações por toda a cristandade. Não se pode, e nem se pretende, reduzir toda a poesia do jesuíta ao processo de contrafacção, ou transposição ao divino de canções populares, mas é ilógico desconsiderar a importância desta técnica em sua obra.

A técnica de contrafacção ao divino é utilizada por Anchieta em diversos graus. A transição suave do sentido profano ao sagrado é conseguida pela manutenção do ethos original, como o clima pastoril de Venid a suspirar, ou a cena dramática de Mira Nero. Também resulta eficaz o redirecionamento ao correspondente afeto espiritual, como a transição do erótico ao amor divino. Quando Anchieta consegue realizar isto modificando o menos possível o texto original, o resultado é comparável aos melhores exemplos da utilização desta técnica na literatura espanhola. Todavia, na maioria das vezes Anchieta altera a estrutura da canção tradicional, ampliando ou glosando a estrofe original e, em conseqüência, perdendo algo do caráter popular.

Na verdade, em alguns casos a versão ao divino mantém tão pouco da composição original que não podemos mais falar em refundição de texto. É provavelmente isto que ocorre em muitos daqueles exemplos que enquadramos no fenômeno de centonização, onde um texto completamente novo é adaptado a certa melodia pré-existente.

Esta síntese promovida por Anchieta é um dos aspectos mais fascinantes de sua obra. A tentativa de transplantar a mensagem católica através de formas literárias européias para o universo completamente diferente de uma língua que possuía outra estruturação, outros ritmos e outras sonoridades era no mínimo problemática. Certos termos revelaram-se intraduzíveis e exigiam que o jesuíta forjasse palavras novas, utilizando compostos de várias expressões relacionadas, pertencentes ao imaginário do indígena. Embora o conteúdo fosse católico, é improvável que fosse percebido como tal. Somente citando um exemplo, Bosi132 observa que

para a figura bíblico-cristã do anjo, Anchieta cunha o vocábulo karaibebê, profeta-voador. [...] Karaí é tanto o homem branco quanto o profeta-cantor guarani, a santidade, que vai de tribo em tribo anunciando a Terra sem Mal. Mas em que pensariam os índios acoplando karaí à idéia de vôo expressa em bebê? Nos seus próprios xamãs nômades e videntes, mas agora dotados de asas? Ou então em portugueses alados?

A utilização de elementos da mitologia tupi para traduzir os simbolismos da européia poderia resultar em um terceiro plano, uma espécie de meio-termo entre a religião européia e a ameríndia. Era o que parecia temer o espantado bispo Sardinha já em 1552, ao repreender os jesuítas brasileiros pela prática de certas “gentilidades”133.

Entre estas estava o hábito de cantar e até dançar com os índios à moda deles. O próprio Anchieta parece ter incluído danças indígenas em pelo menos um de seus autos134. É claro que o respeito e até a incorporação de certos hábitos nativos pelos jesuítas fazia parte de uma estratégia de aparente aceitação de seus valores, a que se seguiria a gradativa substituição pelos europeus.

Se foi a repreensão de Sardinha que surtiu efeito quase imediato, ou se foram os jesuítas conseguiram logo a substituição deste aspecto da cultura nativa não sabemos. O fato é que pouco tempo depois os relatos jesuíticos deixam de mencionar cantos, danças e instrumentos indígenas relacionados ao culto católico. Mas também por parte das autoridades seculares a prática de danças indígenas, por escravos ou nas quais estivessem envolvidos cristãos, sofrerá a constante repressão nas décadas seguintes.

Também as danças populares européias realizadas em procissões e festas foram sempre objeto de reprovação por parte das autoridades religiosas, como o comprovam as constituições dos bispados. Não obstante as condenações aos abusos, quase nunca levadas a sério, visto serem constantemente repetidas, a Igreja sempre admitiu certos tipos de música e dança como formas de expressão religiosa. Além disso, é claro que a melhor maneira de a Igreja controlar os possíveis excessos nesta matéria é promovendo ela mesma as músicas e danças, canalizando assim o seu poder de persuasão.

A eficácia da música e da dança como instrumentos de persuasão e colonização havia sido notada já nos primeiros contatos portugueses no Brasil, e caberia aos jesuítas o papel de sistematizar este uso, visando objetivos bem definidos. Anchieta explorou estas características em seu teatro e outras obras de caráter didático, inseridas no projeto religioso da Companhia de Jesus para o novo continente. Sem dúvida, muito do impacto que causavam em seus ouvintes devia-se à novidade: o idioma era o tupi, mas a estruturação em versos com rimas, as melodias ibéricas sobre as quais eram cantadas e os novos instrumentos trazidos da europa formavam um conjunto de grande atratividade. Além disso, citando os comentários de Décio de Almeida Prado135, há o “aspecto lúdico do teatro, entendido como jogo, brincadeira, porta imaginária através da qual entravam com enorme entusiasmo os índios, simulando ciladas, declarações de guerra, combates navais”.

Em outras de suas poesias, não destinadas ao teatro, Anchieta parece estar mais preocupado com a sua própria relação com a divindade, utilizando para isto todos os recursos poéticos disponíveis, entre estes a técnica de contrafacção. É o que notamos em Venid a suspirar, Mil suspiros dió Maria, Mira Nero e outras cantigas e romances contrafeitos ao divino, não apenas com o objetivo de propagar o pensamento religioso mas, acima de tudo, de enriquecer estas canções que haviam se tornado populares, fazendo sua própria oferenda à divindade.

O prosseguimento das pesquisas certamente resultará na identificação de novos paralelos, tendo em vista a abundância de manuscritos poéticos e obras teatrais e outras contendo citações poéticas ainda não analisadas. Mesmo no aspecto das fontes musicais, várias obras ainda não foram consultadas, como ensaladas e missas de paródia, formas musicais contendo melodias populares tratadas sob diferentes técnicas. Podemos admitir também a possibilidade de certos romances e cantigas usadas por Anchieta terem-se perpetuado até nossos dias na tradição popular, a exemplo do que ocorreu com romances como os da Bela Infanta, do Conde Claros e tantos outros.

Algumas questões também aguardam solução, como o motivo do título S. Tomé de Mira a um poema que trata de algo totalmente diverso, e ainda o significado da enigmática epígrafe por gracigcogtz, encontrada em vários de suas poesias. A hipótese de que se tratariam de referências a melodias utilizadas ainda não pode ser comprovada. Ainda não sabemos se Anchieta teve acesso a alguma das fontes que consultamos ou só conhecia as canções oralmente, ou mesmo apenas versões intermediárias baseadas nelas. Também, especialmente no caso de Mira Nero, não podemos precisar qual das diversas versões musicais de que dispomos, ou se nenhuma delas, teria sido cantada no Brasil. Mesmo assim, este repertório precisa ser novamente transformado em música, isto é, em acontecimento sonoro. Muitas das poesias aqui analisadas foram compostas em função da música, e só poderão ser devidamente apreciadas se lhes for restituída a roupagem original, e temos à nossa disposição informações suficientes no plano da interpretação e instrumentação para atingir um resultado bastante próximo daquele obtido pelos músicos do Brasil quinhentista.


Notas

132BOSI, op. cit., p. 65-66.

133Carta ao P. Simão Rodrigues, da Bahia em julho de 1552, Transcrita em CASTAGNA, op. cit., 1991, vol. II, p. 37-38.

134Dia da Assunção: Dançam dois e, em presença dos do sertão, dizem [...] Danço aqui à moda dos meus. ANCHIETA, op. cit., 1989, p. 583.

135PRADO, Teatro de Anchieta a Alencar, São Paulo, 1993, p. 20.


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