Revista eletrônica de musicologia

Volume IX - Outubro de 2005

home . sobre . editores . números . submissões . versão em pdf

 

Os ídolos de Francis Bacon e as ideologias na cognição musical


João Fernando de Araújo (USP)

Resumo: O presente artigo investiga os aspectos condicionantes que interferem no momento da audição musical, isto é, sobre a cognição do fenômeno musical, oferecendo-nos, dessa forma, indícios sobre como ajuizamos as formas musicais. Os ídolos a que nos referimos neste texto são provenientes da doutrina dos Ídolos do filósofo Francis Bacon (Novum Organum). As ideologias são as funcionalidades que se atribui a algumas formas musicais que acabam atuando, em igual medida, como critério para o gostar e para os juízos de valor que se realiza diante da audição sonora. A música new age e os totalitarismos dos meios de comunicação mencionados no texto são exemplos das ideologias que mascaram a cognição musical.


Introdução

Quando falamos em ídolos e ideologias em música associamos tais termos aos ídolos promovidos pela indústria cultural, bem como pelas ideologias criadas em torno desses mesmos ídolos, em igual medida, o termo indústria nos remete à produção. Quando falamos em produção musical ou em qualquer forma de produção cultural, não é muito difícil pensarmos nos mecanismos que engendram esse produto na sociedade, e no percurso de elaboração de uma música, até que atinja sua forma-produto. A palavra produção, relacionada a processos industriais, induz-nos a associá-la a complexos sistemas de fabricação, em que a matéria-prima é transformada num bem socialmente útil. Assim, pelos devidos processos de elaboração, confecção, distribuição e divulgação, um determinado produto atingirá sua forma final destinado ao mercado consumidor. É inegável que os bens culturais tornaram-se produtos vendáveis como qualquer objeto de consumo em sociedades capitalistas. É dessa forma que a mentalidade capitalista em produzir excedentes para maximizar o lucro não tardaria a ser levada às atividades que, aparentemente, não eram vistas como fonte de rentabilidade, áreas da realização humana que não havia possibilidade de empregar um determinado capital para se obter lucro, isto é, às produções, às manifestações dessa forma de linguagem denominada música.

Mas como a música pôde transformar-se em produto?

Antes do advento do fonógrafo, em fins do século XIX, essa forma de manifestação humana, representante legítima do conceito de arte do tempo, existia para o ouvinte somente se este estivesse in loco; a música existia pela presença do músico. A notação musical, enquanto um código, uma representação do som, necessita de alguém para decodificá-lo. O músico é o especialista capaz de retirar do papel o som nele contido e trazê-lo para o mundo sensível.

Com o fonógrafo o músico foi mais uma vez relegado à marginalidade — condição historicamente ontológica para os musicistas. O fonógrafo possibilitou que se registrasse o som, não precisando da notação musical enquanto um recurso mnemônico para os músicos. A apreciação musical passa a não depender mais de um local propício para a sua audição, não precisa mais de um especialista em decodificar signos. Registrar diretamente o som torna-se assim uma fonte inexaurível de riqueza a ser explorada por uma indústria.

Desde então, as relações de trabalho e o meio de produção musical modificaram o modo de fazer e compreender música. A indústria cultural dispõe de um enorme excedente de produtos musicais para a sua comercialização. Hoje, compõe-se e registra-se música funcional com uma enorme intensidade, compõe-se música para vender sabonete, carro, cigarros, idéias, comportamentos; músicas para relaxar, músicas para dançar, músicas para levar os ouvintes aos teatros etc. É dessa forma que a indústria cultural, cada vez mais, transforma o trabalho do músico em algo oficioso, onde o músico, profissional e conivente da funcionalidade atribuída à música, não possui comprometimento com a sua arte, um profissional apenas vinculado ao capital, à produção em série.

Ora, mas consentindo com a assertiva da existência de uma produção musical em série estamos pressupondo uma uniformidade estética a elas, isso quer dizer que um produto qualquer somente será fabricado em série a partir do momento que o modelo estético foi assimilado por um público ouvinte e pagante dessa estética-mercadoria. No entanto, o indivíduo que já não pode mais subtrair-se da massa amorfa de consumidores está impossibilitado de saber se o prazer estético que obtém com a música comprada no mercado lhe agrada por ela mesma, por suas qualidades intrínsecas, ou se há algo que lhe escapa às razões das suas preferências musicais, das suas escolhas, induzindo-lhe a consumir determinada guloseima sonora.

Os "experts" do mundo fonográfico prevendo a mínima possibilidade de reflexão por parte dos consumidores, reflexão que poderia levá-los a duvidar do seu próprio gosto musical, utilizam-se de um tipo de mascaramento musical, promovendo o sofístico recurso da criação de ídolos. Os ídolos promovem o afastamento do ouvinte da própria música para jogá-lo de encontro a algo que, em absoluto, não se vincula com o mundo dos sons, com o universo da percepção auditiva, mas ao contrário, ao que está vinculado ao visível, ao palpável, ao corpóreo mundo das idolatrias, do simulacro.


Francis Bacon e a Doutrina dos Ídolos

Os ídolos são uma falsa imagem acerca de algo, atuando como um tipo de filtro que modifica a cognição do objeto apreciado. Como veremos a seguir, existem elementos que atuam no gostar, na apreciação musical, condicionantes que ultrapassam os limites do juízo cognitivo, às razões do que chamamos de gosto musical individual e identidade musical social.

Contudo é peremptório compreender o significado do termo ídolo em sua origem. A palavra Ídolo, em latim, significa Idola, Simulacra, mas foi com Francis Bacon, filósofo da Idade Moderna, que o termo adquire um sentido de "falsas noções", ou seja, um tipo de velamento sobre o objeto que se pretende conhecer, portanto, uma espécie de pré-juízo sobre o ente observado. Em seu livro Novum Organum (1626), Bacon apresenta a sua doutrina dos Ídolos composta de quatro tipos, a saber: Idola Tribus, (ídolos da tribo); Idola Specus (ídolos da caverna); Idola Fori (ídolos do foro, da praça); Idola Theatri (ídolos do teatro).

Vamos compreender melhor estes quatro tipos de ídolos, traçando uma analogia com a concepção de ídolo do senso comum, enquanto um constructo da indústria cultural.

Idola Tribus é proveniente da própria espécie, do gênero humano, algo latente à natureza humana que sempre nos impele a dar importância excessiva para determinados eventos, para as coisas que nos cercam, querendo que o mundo seja algo para além do que é. Os Ídolos da Tribo são a nossa vontade de interpretar a realidade, no entanto, uma interpretação onde os sentidos e o intelecto podem nos conduzir aos pré-juízos. Ora, se pela própria natureza humana, pelas falsas noções geradas pelos sentidos e pelo intelecto, não nos é possível conhecer a coisa em si (as essências), havendo sempre a possibilidade de distorcermos os eventos, os fenômenos que nos são apresentados, podemos inferir que já há uma desqualificação natural, ou melhor, uma impossibilidade de apreendermos as produções humanas pelo o que elas são. Talvez esteja no Idola Tribus uma possível explicação para a aceitação, por parte de alguns indivíduos da sociedade, sobre os ídolos criados pela indústria cultural e, conseqüentemente, sobre a qualidade de suas obras. A emergência e a vigência dos ídolos na sociedade, pela perspectiva do Idola Tribus, são conseqüências da existência humana. Mas, faz-se necessário propormos algumas indagações, ou seja, por que alguns indivíduos não se sujeitam às influências dos ídolos? Será que a Idola Tribus não faz parte da "natureza" humana como atribui Bacon? Pois verificamos na sociedade indivíduos que, em certa medida, estão livres dos pré-juízos inculcados pelos Ídolos da Tribo.

Idola Specus, nessa forma de Ídolo as falsas noções são provenientes da "caverna" particular em que cada indivíduo habita, decorrente da educação, dos livros e dos costumes que cada um de nós está inserido desde o seu nascimento, pois não existe indivíduo descontextualizado. Embora sejamos lançados em um mundo onde valores ditos universais nos são dados como tal, cada indivíduo acaba por refugiar-se em seu próprio mundo, em sua própria caverna. Aceitar ou rechaçar determinados ídolos impostos pela indústria cultural pode dar-se pela Idola Specus , ou seja, a divergência, a aceitação da multiplicidade de ídolos faz parte da "falsa noção" que temos sobre um determinado objeto. Mas, tanto o Idola Tribus como o Idola Specus são provenientes do interior de cada um de nós.

No que concerne ao Idola Fori, este é proveniente das relações entre as pessoas, das significações das palavras, do seu valor semântico, das construções de palavras que não existem correspondência no mundo sensível, obscurecendo e confundindo o entendimento humano diante de objetos que lhe são apresentados aos sentidos. A função da linguagem é a de comunicar, gerar sentido; no entanto, as constantes interseções com indivíduos da sociedade nos fazem apreender conceitos, palavras, nomeações que são utilizadas para algum tipo de sofisma, quase sempre visando velar o conhecimento do objeto observado. Quando os promotores musicais classificam e rotulam determinadas formas musicais, como por exemplo, um fazer musical que emergiu em fins do século XX de "new age music", e posteriormente acrescentam outras definições à mesma forma musical na tentativa de explicá-la, tais como: unio-music, música da nova consciência etc., estão empregando um novo conceito tão confuso quanto o anterior, e é desse modo que não se busca o conhecimento do objeto nomeado, mas apenas velar, cada vez mais, o seu entendimento. Este é um tipo de Ídolo engendrado pela indústria cultural no indivíduo incauto, mas pelo exercício do intelecto podemos perceber tal sofisma e assim nos livrarmos do Idola Fori (da praça).

Cabe-nos investigar o Idola Theatri. Tal forma de velamento do objeto por este ídolo dá-se pelas doutrinas a que somos submetidos, pelos mais variados tipos de instituições que permeiam a nossa vida, pelas autoridades que nos impõem modelos de comportamento, verdades impostas por uma superestrutra, pela performance dos políticos profissionais. Ora, não é difícil pensarmos no ídolo industrial, construído para ser a própria autoridade no assunto, onde a sua fala é legitimada não pela qualidade de sua obra, mas pelo poder de persuasão que sua imagem, enquanto Ídolo Theatri, promove nos indivíduos. Os indivíduos sujeitos a esse tipo de idolatria aceitam, sem questionamento, o que lhes é oferecido pelo ídolo.

Diante do que vimos acima, inferimos que para valorarmos uma determinada obra, pelo o que ela é, por sua ousia, faz-se necessário nos livrarmos dos Ídolos que são formados em nossa mente, tanto dos Ídolos provenientes do nosso interior, o Ídolo da Caverna e o Ídolo da Tribo, como os provenientes de fora, o Ídolo do Foro e o do Teatro. Aparentemente, essa seria uma tarefa fácil se considerarmos que pela informação, pela educação, tanto pela formal como pela informal, poderíamos formar indivíduos conscientes e livres desse processo de doutrinação do gosto gerado pelos ídolos, indivíduos buscando mais a música do que todos os fetichismos que envolvem a sua audição. Mas isso não se dá, pelo simples fato de que a música, agora como um produto do sistema capitalista, e os músicos, como simples operários desse sistema (ao menos para os músicos que subsistem diretamente dessa atividade industrial), não se reduzem ao que realmente são, isto é, homens e mulheres fazendo, organizando, manipulando sons, construindo "músicas" para serem apreciadas, criticadas, descartadas, recriadas, esquecidas. O sistema de ídolos serve para substituir a relação ouvinte/música, para a relação consumidor (fanático)/música, uma relação onde, perpetuando-se o ídolo, a sua música estará sempre vigendo, mantendo-se no mercado como um produto em potencial.

Como apresentamos acima, a doutrina dos Ídolos de Francis Bacon, principalmente o Idola Fori e o Theatri, somado à nossa fragilidade diante dos Idola que são provenientes do nosso interior (Tribus e Specus), vigem plenamente na forma dos ídolos midiáticos, fazendo parte do complexo ideológico que nos é imposto no momento de uma audição. Ídolos que acabam mascarando a nossa cognição sonora, distanciando-nos, cada vez mais, de uma fenomenologia da música, de uma possível redução fenomenológica como nos alude Edmund Husserl.

Sendo assim, no momento, podemos apenas formular algumas questões, mas para serem respondidas necessita de um maior estudo sobre o psiquismo humano e transcende o nosso objetivo nesse trabalho, a saber: será que as pessoas querem ouvir a obra por ela mesma? Ou ainda, o que será de alguns indivíduos se tirarmos deles os seus ídolos, tornando-os conscientes das razões do seu gosto musical?


Outros Velamentos da Cognição Sonora

Possuímos, em igual medida, outros condicionantes cognitivos do som que podem ser igualmente entendidos como Ídolos e incorporados nas narrativas ideológicas. Como por exemplo, as novas tecnologias dos instrumentos geradores de sons, que nos possibilitam uma enorme variedade de timbres, ampliando, desse modo, a nossa percepção do material sonoro. No entanto, muitos compositores contemporâneos utilizam-se das tecnologias de produção de sons como ferramenta principal em suas concepções musicais. A sedução pelas peripécias tecnológicas, atuando assim como parte essencial de suas obras, são ídolos que mascaram as dimensões poéticas do fazer musical.

Não podemos esquecer que essência é uma palavra latina que tem seu derivado no grego ousia, isso quer dizer "o que é por si mesmo". Portanto, uma produção musical que vai buscar nos atrativos tecnológicos a sua existência, na manipulação de ondas sonoras, depositando nesse parâmetro a sua possibilidade de ser o que é, a sua forma de existência, sua ousia, reduzindo-a ao atrativo tecnológico, está fadada a ser descartável pelo impulso latente do compositor e do ouvinte para buscar sempre novos recursos tecnológicos, novas ousias para composição e apreciação musical.

Além da tecnologia, compreendida por nós como um tipo de velamento musical, outro Ídolo se estabelece, é o nomear e tentar explicar os fenômenos concernentes ao plano sensível e ao não-sensível, para torná-los assim necessários para o ser humano construir entendimentos das realidades. Assim, o real desvela-se para muitos somente através das nomeações dos entes.

É dessa forma que as manifestações artísticas passam pelo mesmo processo de aquisição de existência. Esse processo ocorre após a prévia apreensão, nomeação e identificação das mesmas, fazendo com que o produto, proveniente das ações do homem, torne-se real, saindo de sua condição de "coisa" para a de objeto definível e assimilável. O nome dos objetos e das manifestações humanas passam a representar-lhes, muitas vezes, a própria existência.

Ora, nomear fazeres musicais significa definir, rotular, segmentar, tornando-se mais um empreendimento de uma superestrutura que acaba por limitar a cognição sonora, direcionando e compartimentando a priori o gostar. Sendo assim, um fazer musical ou uma manifestação sócio-musical somente passam a existir para o público consumidor através de sua nomeação, divulgação e assimilação, tornando o ouvinte, cada vez mais, dependente do complexo ideário que acompanha tais nomeações musicais.

Exemplificando a necessidade de nomear fenômenos musicais, para transformá-los em um Ídolo da cognição, podemos citar a música "new age". Nas criações musicais, o objeto criado só passa a existir perante a sociedade, após ter sido devidamente nomeado e compartimentado, como qualquer outro produto que precise desse sistema para sua adequação ao mercado. Tal condição da música em nossa sociedade reafirma o caráter industrial das produções culturais; porém, em princípio, uma produção musical não deveria adquirir a forma-produto como é plenamente assumida em nossa contemporaneidade. É através de uma taxonomia em música, um processo judicativo que os promotores new age imputam esta forma-produto em algumas produções musicais, sejam elas contemporâneas ou não, sem critérios objetivos para o assentimento de várias formas musicais para o âmbito da "new age music".

Nomear formas musicais e propô-las como uma música da "nova era" é, como vimos, torná-las reais perante a sociedade ávida de Ídolos e de consumo, mas é realizar um ato judicativo próprio do intelecto. Um dos significados de juízo é, segundo Abbaganano (1998:51), "uma atividade valorativa, embora possa expressar-se por fórmulas verbais diversas como: regras, normas, exortações, imperativos, pareceres, conselhos, conclusões e, em geral, fórmulas que expressam uma escolha ou um critério de escolha". É por esse ato valorativo que muitas produções são abarcadas como possuidoras de características de uma música new age. Ajuizar, portanto, é exercer um critério particular de escolha, o que Kant distinguiu de juízo determinante (propriamente intelectual) e juízo reflexivo (teleológico ou estético).

Podemos considerar que o ato judicativo, exercido pelos promotores do movimento new age no Brasil, passa por essas duas instâncias: é determinante, pois através de um princípio geral, de uma regra, atribui às mais variadas composições musicais, estruturalmente diferenciadas, denominando-as de new age; pressupondo que as particularidades musicais destas, sejam contidas numa generalidade conceitual. É também um juízo igualmente reflexivo, já que, partindo das singularidades e particularidades que configuram diversas músicas, quer integrá-las em um todo que constitui o complexo ideário do movimento, operando, desse modo, um conceito teleológico, um juízo puramente estético.

Uma das estratégias da indústria musical é oferecer aos consumidores sempre novas subdivisões de seu produto musical, como por exemplo, a denominação new age music transformando-se em música da "nova consciência", "unio-music" etc., eficaz estratégias de marketing para se manter no mercado. Assim, através de cada nova nomeação novos conceitos são assimilados pela sociedade a partir de novas identificações. Mas, será que o ouvinte necessita definir o que ouve para poder utilizar a música da maneira que lhe convier? Apreciar uma música requer passar pelo entendimento de conceitos e escopos? Ouve-se a música ou consome-se o conceito forjado por indivíduos que determinam comportamentos sócio-musicais?

Novas possibilidades musicais, provenientes de manifestações populares autênticas ou provenientes de uma expressão individual, não precisam de informações conceituais nem de atribuições ideológicas (como por exemplo, a música new age como reflexo musical de uma "nova consciência" do homem em fins do século XX) para serem apreciadas. Gosta-se em primeira instância da música, do seu significado singular e particular, posteriormente, mas não necessariamente, percebe-se matizes desse gostar pelo conceito que a integra e por suas possíveis funcionalidades. Porém, o segundo elemento não deve justificar ou forjar o primeiro, como acontece com a música new age: uma música que pretende ser "nova" e ser reflexo de um novo paradigma do pensamento humano.

Havendo essa possibilidade, ela surgirá espontaneamente pelo fazer musical popular, sendo compreendida e apreendida em sua singularidade como música. As possíveis finalidades e funcionalidades tornar-se-ão independentes do ato criativo do músico e das atribuições superestruturais.

É por intermédio desses complexos ideológicos, somados aos meios de comunicação em massa, que a indústria agrega outros produtos as serem explorados, os culturais, "coisificando" segmentos da sociedade: os artistas e os ouvintes.

Não podemos deixar de abordar que a ideologia musical é corroborada por indivíduos inseridos nos meios de divulgação e perpetuação dos ídolos, sem eles, a cognição sonora gozaria da liberdade necessária para o desenvolvimento de todo o potencial criativo do homem. Sendo assim, faz-se necessário reportarmos-nos à indústria da comunicação como um mecanismo condicionante da produção musical, portanto, do mascaramento da audição sonora.


I

Existem vários tipos de "morte" social, dentre elas, e talvez a pior, está a ausência de oportunidade e condições de uma existência digna para o desenvolvimento de todo o potencial criativo do cidadão, para que estes exerçam livremente o pensamento sem as objetivações inculcadas pelo sistema de comunicação, onde os detentores de tais meios, sem nenhum escrúpulo, forjam à sociedade os moldes que lhes convém, impondo necessidades, ideologias, modismos, consumo exagerado, alienação social e prostituição disfarçada de entretenimento, sendo estas algumas das causas geradoras do embotamento dos sentidos, da linguagem, do pensamento e dos sentimentos.

Para determinados indivíduos a impossibilidade de poder expressar-se através de uma linguagem que o satisfaça (seja ela musical, pictória, literária etc.), que não esteja vinculada a algum mecanismo de controle utilizado pelos totalitaristas da comunicação é, em igual medida, um outro tipo de aniquilamento social. A morte não é somente física, corpórea, é também subjetiva, devido a estagnação das idéias, da energia que aos poucos se esvai pela condensação, ou seja, petrificando-se pela impossibilidade de comunicação efetiva. É somente pela troca, pela dispersão e pelo dinamismo efetivado por um sistema de comunicação igualitário que a morte da subjetividade, da essência do homem, não será antecipada pela morte fisiológica, da carne.

A desigualdade das condições de comunicação, de gestação e de sobrevivência das idéias, incluindo-se aqui as idéias vinculadas a arte, levam, invariavelmente, ao aborto ou à sua morte prematura, sendo-lhe negado o direito de nascer e coexistir, com equanimidade, na diversidade das produções humanas, onde uma ínfima parcela dessa produção (idéias) usufruem a fruição necessária para o seu desenvolvimento.

Diante do sistema totalitário de comunicação as regras já estão de antemão estabelecidas, onde qualquer idéia divergente à rígida proposta "midiática" está fadada a sucumbir, a sufocar-se pela "câmara de gás" dos sistemas de comunicação.

Reportando-nos à música, a produção musical autêntica como potencialmente emancipadora da humanidade do homem, deve coexistir com as outras produções artísticas industrialmente fabricadas, sem julgamentos estéticos a priorísticos pelos que elaboram e entendem a música em um processo manufatureiro (arte pela arte), assim como, pelos capitalistas musicais que a fabricam e a entendem como um produto industrializado em série (arte pelo dinheiro). A população deve receber ambas as formas artísticas, para que possa livremente realizar a sua escolha, para que possa se desfazer dos processos de construção dos Ídolos, para que possa aceitar o rechaçar o que lhe é oferecido insistentemente.

Podemos citar dois caminhos para uma possível transformação da realidade cotidiana, dentre tantos possíveis e inimagináveis. O primeiro deles e essencial é pelo desenvolvimento do pensamento coerente, crítico e ético, visando à praxis e, conseqüentemente, promovendo um salto qualitativo nos valores do senso comum, tornando as pessoas promotoras do seu bem-estar individual e social, ajudando-as a livrarem-se dos grilhões das necessidades impostas pelos totalitários da comunicação que incentivam o consumo alienado. Um outro caminho, não menos importante, é através da música, por ser ela uma linguagem possuidora de forte apelo emocional, atuando em nossa mente de uma forma ainda não muito clara, mas, em hipótese, capaz de formar indivíduos conscientes ou alienados da realidade circundante. Este ato em potência dá-se tanto pelos conteúdos dos textos que acompanham a música, como pelas variações semânticas geradas pelas infinitas possibilidades de combinações de notas, ritmos, timbres, etc. No entanto, o princípio emancipador e libertário do jugo da indústria cultural será efetivado principalmente pela praxis e pela responsabilidade do artista diante da sua condição de ídolo (formado na mente humana, como vimos acima), assumindo, querendo ou não, uma postura de líder na construção do pensamento e do comportamento dos indivíduos que, por sua vez, pautam as suas ações pela retórica de seus ídolos.

Ambos caminhos tornam-se eficazes para o "renascimento" do conceito de humanidade que a nós é atribuído, mas para isso, faz-se necessário que a multiplicidade dos pensamentos e das linguagens artísticas (forma e conteúdo) sejam levadas, indistintamente, à população.

Para finalizar, gostaria de deixar uma questão: será que estamos ouvindo realmente a arte das musas, ou por intermédio de suas astúcias, as sedutoras ninfas estão nos iludindo com um conceito inventado pelo próprio homem: música. Pois como vimos acima, a isso que denominamos música, em absoluto, nos chega aos sentidos desprovidos de mascaramentos cognitivos, portanto, de ídolos e ideologias que nos distanciam de uma audição mais verdadeira e significativa dessa forma de linguagem de comunicação criada pelo homem e destinada a outros homens.


Rererências


ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2a ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998.

ADORNO, Theodor W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In Os Pensadores 67-108. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

BACON, Francis. Novum Organum. In Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

JARDIM, Antonio. Pássaros Não Fazem Música: Formigas Não fazem Política. Pesquisa e Música: Revista do Centro de Pós-graduação, Pesquisa e Especialização do Conservatório Brasileiro de Música 1, no. 2 (Dezembro 1995): 75 - 80.

_______________. A Dimensão Poética no Contexto Hegemônico da Técnica. Manuscrito, 1995.

 

 

 

 

 

 

 

Nando Araujo é músico-instrumentista, compositor, graduado em Filosofia pelo Centro Universitário Moura Lacerda – RP, pós-graduado em Filosofia Clínica (Lato Sensu) e Mestre em Musicologia pelo Conservatório Brasileiro de Música (CBM-RJ). Leciona Filosofia, Musicologia, Etnomusicologia e História da Música (Erudita Ocidental e Popular Brasileira), para os cursos de Musicoterapia, Música Popular, Letras e Direito na Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP). Editor e idealizador da revista eletrônica Pense Música, (www.pensemusica.com.br). Autor do livro: Quando as Musas usam Máscaras, ídolos e ideologias em música. São Paulo: Apontamentos, 2002. Compositor do CD de música instrumental intitulado “No Return” (1994). Atualmente faz estágio no laboratório de Estética Experimental do Departamento de Psicobiologia da USP (Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras de Ribeirão Preto).