Revista eletrônica de musicologia

Volume VIII - Dezembro de 2004

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O regional, o rádio e os programas de auditório: nas ondas sonoras do Choro

Ana Paula Peters (UFPR)

Através de um breve panorama do surgimento das emissoras de rádio no Brasil, situar o aparecimento dos programas de auditório, que necessitando de uma variedade de novidades, entre as quais os regionais, coloca a prática do choro sendo mantida por estes grupos. Esta experiência será contada através dos primeiros apontamentos da análise sobre a memória dos músicos que participaram de regionais das rádios PRB-2 e Guairacá, em Curitiba e da sua vivência no e com o rádio.

 

Sintonizando

A partir de 1920, o rádio começa a se difundir pela Europa e Estados Unidos. Nesta época, os aparelhos receptores eram precários e montados pelo próprio interessado que juntava, numa pequena caixa, um cristal de galena, um indutor, um condensador de sintonia e fone de ouvido, acoplando tudo a uma antena improvisada junto ao varal de roupas. Não utilizavam energia elétrica e a audição era individual, conseguida com muito trabalho de tentativa de sintonia.

Os aparelhos receptores elétricos só surgiram com a expansão do número de emissoras e eram caríssimos. A programação, no início, além da precariedade dos equipamentos transmissores e receptores, tinha um caráter não comercial e voltava-se a emissões educativas e culturais, durando poucas horas e sendo produzida por grupos entusiastas que faziam do rádio uma forma de passatempo. Para este funcionamento, os membros associados pagavam uma taxa de contribuição e a estação somente ia ao ar depois de uma autorização governamental, já que o rádio era enquadrado como uma forma de telegrafia e portanto, assunto de segurança nacional.

A primeira emissora a surgir no Brasil foi a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, propriedade do escritor e cientista Roquete Pinto e do cientista Henrique Morize. Foi ao ar pela primeira vez em 20 de abril de 1923, já contando com uma programação regular que incluía jornais falados, aulas e música. A segunda emissora, também carioca, foi a Rádio Clube do Brasil surgida em 1924. Em São Paulo a pioneira foi a Rádio Educadora Paulista, inaugurada em novembro de 1923, vindo a seguir a Rádio Clube de São Paulo, em junho de 1924. E em Curitiba, a primeira emissora de rádio foi inaugurada em 27 de junho de 1924, a PRB-2, Rádio Clube Paranaense, que manteve-se única até 1946, quando surgiu a Rádio Marumbi, de Campo Largo.

Neste período, rádio ainda não era uma palavra de significado comum a todas as pessoas, afinal poucos eram os privilegiados que possuíam o aparelho. Portanto, as primeiras programações eram voltadas para esta elite, proporcionando grandes concertos e óperas, que giravam nos fonógrafos, e conferências ao vivo, declamações de poesia e algumas notícias lidas do próprio jornal.

Com a primeira transmissão direta e oficial do Rio de Janeiro de um concerto em homenagem ao recém eleito presidente da República, Washington Luís, aos ouvintes de São Paulo, Niterói e Petrópolis, o rádio iniciava sua aproximação entre os principais centros econômicos do país. O conceito de distância e isolamento social começou a ser repensado e as massas urbanas iniciaram o acesso ao universo da informação eletrônica. Num país onde predominava o analfabetismo, o rádio assumiu um papel social fundamental, resumindo sua missão àquilo que Roquete Pinto idealizava ser seu objetivo maior, promover a educação e a cultura nacional.

Com a Revolução de 1930, Vargas e os tenentistas vislumbraram o potencial político e econômico do rádio e trataram de criar uma legislação específica reservando ao governo poder absoluto em relação ao novo e poderoso instrumento de comunicação. A autorização para funcionamento passa a ser a título precário podendo ser cancelada a qualquer momento. Se por um lado havia um rígido controle por parte do governo, coube a este acelerar sua difusão ao autorizar a partir de 1º de março de 1932 a propaganda comercial.

Ainda em 1932 explode o movimento Constitucionalista de São Paulo e o rádio demonstra pela primeira vez toda sua enorme potencialidade informativa e política, através da Rádio Record de São Paulo que passa a ser porta-voz do movimento. Derrotados os paulistas e abrandada a censura, o rádio brasileiro toma novos rumos. A liberação dos anúncios ampliou o universo de penetração e a função educativa/cultural cedeu espaço para a diversão popular com os programas de variedades, voltados para as imensas massas urbanas ávidas de lazer e diversão. Inicia-se a chamada Era do Rádio, que durante um quarto de século predominou no cenário social e da comunicação brasileira. Um grande mercado de trabalho foi aberto para compositores, cantores, instrumentistas e arranjadores, gerando uma demanda na formação de artistas talentosos, colocando o rádio como principal veículo de divulgação e profissionalização dos músicos populares.

O rádio comercial e a popularização do veículo implicaram a criação de um elo entre o indivíduo e a coletividade, mostrando-se capaz não apenas de vender produtos e ditar “modas”, como também de mobilizar as massas, levando-as a uma participação ativa na vida nacional. A profissionalização do rádio começou a se fazer pelo atendimento das exigências do povo, em prejuízo ao sentido cultural e educativo que Roquete Pinto buscava. Os progressos da industrialização ampliavam o mercado consumidor, criando condições para a padronização de gostos, crenças e valores. As classes médias urbanas (principal público ouvinte do rádio) passaram a se considerar parte integrante do universo simbólico representado pela nação. Assim,

[...] o rádio chegou aos anos 40 mais atuante do que nunca. Os programas reuniam esforços para tentar superar de todas as formas a concorrência. A audiência era maciça. Não ter um rádio ou, pelo menos, não ouvir os programas, nem que fosse na casa do vizinho, amigos ou parentes, era estar out, naquela época (CASÉ, 1995, p. 20).

A entrada do investimento publicitário também finalizou a fase da improvisação, ampliando a concorrência, quando se aprofundou a contradição entre “a preocupação cultural da radiodifusão e o interesse das camadas da classe média urbana, voltados exclusivamente para o divertimento” o que originou o “rádio moderno: o rádio comercial, destinado a atender por todas as formas ao gosto massificado dos ouvintes, para maior eficiência da venda das mensagens publicitárias dos intervalos” (TINHORÃO, 1981, p. 43). A conquista de ouvintes destinava-se a mudar não apenas o tipo de relacionamento com esse mesmo público, mas implicava na adoção de modificações na própria estrutura da emissora, que buscava sempre uma maior aproximação com seus ouvintes,

As novidades decorrentes dessa mudança seriam representadas, principalmente, pela variedade de programação, através do encurtamento dos horários (apareciam os “quartos de hora”); pela radiodifusão de histórias (o chamado “teatro em casa”); pela maior participação de artistas populares em programas de estúdio (o que, em poucos anos, faria surgir os programas de auditório); pela nacionalização do chamado cartaz do rádio (ajudado inclusive pelo governo, com a inclusão de música popular no programa “A hora do Brasil”); e, finalmente, pela presença de figuras do próprio povo diante dos microfones (programas de calouros) (TINHORÃO, 1981, p. 44).

Em São Paulo a Rádio Record saiu na frente ao profissionalizar um setor onde predominava o amadorismo. Contrata profissionais da melhor categoria que passam a constituir o quadro permanente, na época chamado de “cast”, e exclusivo da emissora. Também segmentou a programação criando gêneros de programas que atendessem aos diversos interesses dos ouvintes, como podemos perceber no comentário sobre o redimensionamento do Programa Casé,

O programa tinha sido dividido em duas partes. Das 8 às 10, só música popular, e, das 10 até o final, música erudita, com os pianistas Arnaldo Estrela e Mário de Azevedo e o violonista Romeu Ghipsmann. O resultado foi que, nas duas primeiras horas, o telefone não parou de tocar, com pedidos e congratulações. Em compensação, nas duas horas seguintes, a campainha não tocou uma vez sequer (CASÉ, 1995, p. 44).

Os dirigentes das gravadoras e das emissoras de rádio, assim como os proprietários das editoras musicais que começavam a se multiplicar, abriram os seus negócios sabendo que estes eram capazes de render lucros incalculáveis. Alguns cantores também percebiam que o ofício escolhido poderia proporcionar recursos suficientes para a sua sobrevivência. Mas os compositores ainda levariam algum tempo para se convencerem de que exerciam uma profissão que poderia ser remunerada. A arrecadação e a distribuição de direitos autorais ainda era algo nebuloso naquela época, embora uma lei de autoria de Getúlio Vargas, quando deputado representante do Rio Grande do Sul, assegurasse para os compositores o pagamento dos direitos autorais, todas as vezes em que as músicas fossem exploradas comercialmente.

O primeiro passo das emissoras cariocas e paulistas no sentido de modernizar as programações foi a criação dos programas de 15 minutos, os chamados “quartos de hora”. Aquele “quarto de hora” geralmente era ocupado por um cantor, por um instrumentista ou por um ator, fazendo, quase sempre, números humorísticos. Nem sempre o esquema era rigorosamente respeitado, tanto que, quando um artista, em busca da divulgação de sua obra ou do seu próprio nome, procurava uma emissora, esta, se achasse interessante a sua participação, apresentava-o com um chavão que se tornaria famoso: “De passagem pelos nossos estúdios, Fulano de Tal cantará/tocará mais uma página de seu repertório” (CABRAL, 1996, p. 34).

Em 12 de setembro de 1936 foi inaugurada, no Rio de Janeiro, aquela que iria se tornar a mais influente e importante emissora de rádio brasileira de todos os tempos, a Rádio Nacional. No início propriedade do grupo jornalístico A Noite e posteriormente em 1940, durante a vigência do Estado Novo, encampada pelo governo federal e transformada na ponta de lança da propaganda varguista, não apenas no Brasil, irradiou para os cinco continentes. Com grande investimento do governo, logo passou a figurar entre as cinco emissoras mais potentes do mundo. Sua programação em quatro idiomas levava ao exterior a ideologia do Estado Novo e a imagem de uma potência em formação. Assim,

O rádio brasileiro, nascido oficialmente na década de 20, teve seu amadurecimento na década de 30 e chegou ao seu apogeu na década de 40. O profissionalismo e a experiência se juntaram com dois outros importantes fatores: a farta entrada de capital estrangeiro no país e o aumento significativo de aparelhos receptores, agora espalhados pelos quatro cantos do Brasil (CASÉ, 1995, p. 86-87).

A Rádio Nacional reuniu o maior elenco de talentos, introduziu e consolidou gêneros ainda não tradicionais no rádio, como a transmissão de jogos de futebol. Em breve, impôs seu padrão de qualidade não apenas ao futebol, mas em especial aos shows de auditórios.

Para atender a esta demanda, os conjuntos de chorões, conhecidos como regional pela associação de sua instrumentação com as músicas regionais, eram a principal mão-de-obra do rádio, que sustentava uma programação com atividades basicamente ao vivo. Inclusive tapavam os furos da programação, quando o regional fazia improvisações a pedido do apresentador, pois sendo um conjunto que não necessitava de arranjos escritos, tinham a agilidade e o poder de improvisar introduções ou acompanhamento para qualquer música interpretada por cantores, cantoras e instrumentistas solistas. Portanto, o rádio era uma empresa que possuía no quadro de funcionários todos os artistas que fariam parte dos programas, nos quais a música contava com uma parcela privilegiada.

No ar, mais um programa de auditório e seu regional

Os programas de auditório nasceram com os primeiros programas de calouros, chegando a se transformar numa nova modalidade de espetáculo de palco. Neste sentido a partir de 1940 temos como conseqüência a corrida das emissoras no sentido da contratação de artistas capazes de agradar o público por sua boa aparência, sua graça ou originalidade nas apresentações de palco. Essa competição levou a valorização dos artistas de rádio e a preocupação em apresentar ao vivo cantores e músicos internacionais, o que foi possível através do aproveitamento dos grandes nomes contratados pelos cassinos. Essa corrida começou a ameaçar as emissoras de rádio, começaram a cobrar entrada, para garantir o equilíbrio financeiro das rádios.

A conquista pela popularidade passa a ser muito importante, levando muitas vezes à transmissão de programas diretamente de teatros, obrigando as emissoras a transformar seus próprios estúdios em pontos de atração. Começava também a nacionalização dos artistas regionais, levando ao intercâmbio de atrações entre as emissoras dos grandes centros brasileiros. A partir de 1930, os cantores e músicos cartazes são obrigados a uma grande mobilidade. A presença destes artistas cartazes muitas vezes provocava uma avalanche de público, obrigando, em certas cidades a transmitir os programas de salas de cinema, das sacadas de teatros ou das janelas das próprias emissoras. Ampliando-se cada vez mais, os programas de auditório são uma

Mistura de programa radiofônico, show musical, espetáculo de teatro de variedades, circo e festa de adro (o que não faltavam eram sorteios), esses programas chegaram a alcançar uma dinâmica de apresentação que conseguia manter o público dos auditórios em estado de excitação contínua durante três, quatro e até mais horas. Para isso os animadores dos programas contavam não apenas com a presença de cartazes de sucesso garantido junto ao público, mas ainda com a colaboração de grandes orquestras, conjuntos regionais, músicos solistas, conjuntos vocais, humoristas e mágicos, aos quais se juntavam números de exotismo, concursos à base de sorteios e distribuição de amostras de produtos entre o público (TINHORÃO, 1981, p. 70).

Para os programas de auditório, sejam shows de calouros ou apresentações dos grandes nomes da música popular brasileira e internacional, os regionais tiveram uma participação muito grande ao dar continuidade às improvisações, tão usual aos chorões. A importância dos regionais também ocorreu devido à interpretação da música popular pelos cantores até fins da década de 1920, no Brasil e no resto do mundo, ter sido prejudicada pela pobreza tecnológica do processo de gravação. Para que uma música tivesse condições de ser bem recebida pelo público consumidor, os cantores tinham de se esgoelar, dando o famoso “dó de peito”, numa campânula a fim de que o equipamento registrasse a cantoria. Assim, até a introdução da gravação elétrica, os instrumentos levaram grande vantagem sobre a voz humana.

Os programas de auditório geravam seu fascínio pelas apresentações artísticas, pela oportunidade das pessoas presentes serem captadas pelos microfones, dando a sensação para todos de integrarem o auditório e a atração que o Rio de Janeiro, como o grande centro urbano, exercia um processo de ascensão social nas áreas menos desenvolvidas do Brasil.

Muitos desses músicos vinham da aprendizagem da música na prática, em rodas de choro e samba, ouvindo e guardando de cabeça a música. Para aprender na prática o sotaque todo especial do Choro, lembra Villa-Lobos,

Vem um e toca o tema, e vem o outro e improvisa. No saxofone, eu fazia assim, ó (e cantarolava). E vem o oficleide e toca um contraponto que é uma maravilha, bem superior a todos os contrapontos clássicos. Isto é o choro. É todo mundo tocando com seu coração, sua liberdade, sem regras, sem nada... a liberdade da arte (ARATANHA, 1996, p. 12).

Essa prática vai ser mantida nos programas de auditório. É importante ressaltar que a palavra Choro serviu inicialmente para designar o jeito “choroso” de se tocar o repertório de músicas estrangeiras que desembarcavam no Brasil durante o final do século XIX. O termo também era usado para descrever a festa em que se tocava este tipo de música e ainda, o agrupamento musical que praticava o estilo. O Choro como forma musical foi batizado por Pixinguinha, que partiu da música dos chorões (polcas, schottisches, valsas, entre outras), misturando elementos da tradição afro-brasileira (devido à freqüência nos terreiros e casas das tias baianas), da música rural e de sua variada experiência profissional como músico.

O conjunto regional nasceu da precária condição econômica de nosso povo, juntando os mais baratos instrumentos à venda e fabricados no País. Nas décadas de 20 e 30, os instrumentos de sopro eram importados e caros, não havendo no Brasil tecnologia em metalurgia para os fabricar. Por isso, a junção de instrumentos como violões (de seis e de sete cordas), cavaquinhos e bandolins de fabricação nacional, com alguma percussão portátil (pandeiro, eventualmente tumbadora), às vezes a flauta (esta, com tradição desde o início do choro como gênero) e, anos depois, o acordeão, compuseram o conjunto harmônico apto a solos e acompanhamentos.

O nome regional se originou de grupos como “Turunas Pernambucanos”, “Vozes do Sertão” e mesmo “Os Oito Batutas”, que na década de 1920, associavam à instrumentação de violões, cavaquinho, percussão e alguns solistas a um caráter de música regional. Pela improvisação na hora da necessidade de acompanhar cantores no tom que eles queriam e de músicas que muitas vezes não conheciam, diversos músicos que viveram neste período apontam esta prática com a maior escola para aprender a música popular brasileira. Cada vez mais esses grupos começaram a se organizar tanto musical quanto profissionalmente, e a partir da década de 1930 alguns regionais de destaque serviram de inspiração para as gerações posteriores. Um destes foi o regional do flautista Benedito Lacerda, o “Gente do Morro”.

A partir da década de 30, o rádio, necessitando de acompanhamento barato para cantores que se apresentavam ao vivo, preferiu o conjunto regional às orquestras, salvo em produções especiais para programas noturnos e consagrados, mesmo assim apenas nas emissoras principais. A base do acompanhamento era o conjunto regional, composto por violões, pandeiro, um cavaquinho ou bandolim, às vezes uma flauta. Jacob não gostava, aliás, da expressão “regional”.

PRB-2: A “Líder” apresentará hoje em seu auditório

Com slogans como o escrito acima, fixando a marca junto ao ouvinte, os programas de auditório, além de criarem o fenômeno das torcidas organizadas e fãs-clubes, foram um nicho para os quais era indispensável a presença de um regional. Em Curitiba, os regionais foram criados na década de 40, na Rádio Clube Paranaense, antiga PRB-2, e mais tarde, na ZYM5 Rádio Guairacá.

Programas como o “Expresso das Quintas”, da antiga rádio PRB-2, comandado por Mário Vendramel e Sérgio Fraga, proporcionaram a estes músicos a oportunidade de conhecer e trocar experiências musicais entre os artistas locais e do eixo Rio – São Paulo, como Orlando Silva, Ataulfo Alves, Dalva de Oliveira, Carlos Galhardo e Vicente Celestino.
Assim,

Se na década de 10 e 20 tínhamos choro gravado por bandas, trios, quartetos sem base (do tipo clarinete, trompete, bombardino e tuba), solistas com piano acompanhante e outras formações, aos poucos o choro passa a ser gravado só com regional, num modelo que vai permanecer quase inalterado por quatro décadas (CAZES, 1997, p. 13).

Os músicos destes regionais, na sua maioria, aprendiam seu repertório ouvindo as músicas pelo rádio (que muitas vezes os obrigava a ficar horas ao seu lado até ouvirem a música que queriam aprender a tocar), comprando discos, do contato com os músicos ou cantores que acompanhavam e, para os que sabiam ler partitura, como conta Hiram Oberg Tortato, integrante do conjunto Choro e Seresta, de materiais aguardados com muita ansiedade que vinham do Rio de Janeiro, como os Cadernos de Choro de Pixinguinha e Benedito Lacerda. O exemplo do Rio também se manifesta quando

o contato pessoal entre fã e seu ídolo se efetivava no Rio de Janeiro, então tornar-se o mais parecido possível com o público dos auditórios cariocas, inclusive através da maneira de falar, era a forma psicologicamente mais satisfatória de realizar a transferência que permitiria não apenas fazer de suas casas uma parte do auditório, mas ainda assumir idealmente todas as possibilidades de vida moderna postas ao alcance da sua condição de representantes da nova classe média em ascensão (TINHORÃO, 1981, p. 74).

Entretanto, na década de 1950, chega-se ao fim deste chamado rádio broadcasting, criado no tempo em que a competição entre as emissoras obrigava-as a contratar com exclusividade elencos fabulosos, com a participação de cantores, orquestras, pequenos conjuntos, produtores, escritores, humoristas,... A esses profissionais restaram apenas as alternativas do trabalho na televisão ou o desemprego.

Assim, com o desenvolvimento da televisão, as emissoras foram acabando os seus programas e dispensando pessoal. No início da década de 1960, apenas a Rádio Nacional, no Rio, e a Record, em São Paulo, dispunham de orquestras, mas não por muito tempo. Iniciava-se uma nova era radiofônica, em que as emissoras trataram de se adaptar aos novos tempos, escolhendo uma nova linha de programação, pois a concorrência com a televisão passou a atrair grande parte dos recursos da publicidade antes dirigidos para o rádio. Em busca dos ouvintes de melhor poder aquisitivo, algumas se dedicaram a transmitir apenas músicas ao gosto das classes A e B ou músicas acompanhadas de informação. A maioria optou por entregar a quase totalidade dos horários aos disc-jóqueis identificados com o gosto musical das classes de menor poder aquisitivo que, no Brasil, constituem a maioria dos ouvintes. Também havia programas jornalísticos de caráter popular, com preferência para o noticiário policial, e a transmissão dos eventos esportivos, especialmente o futebol. As rádios FM ainda não haviam entrado no ar.

O ano de 1969 marca a introdução da televisão nos lares curitibanos, trazendo para si não só os ouvintes, que pouco a pouco tornaram-se espectadores, como também os programas de auditório, que passam para um segundo plano até serem extintos nas rádios.

Lembranças ao pé do ouvido no rádio

As histórias sobre o rádio começam nas dúvidas infantis quando, ao entrevistar o seu Vicente, contou-me do fascínio que as músicas vindas daquela pequena caixa lhe causavam, ao comentar que “desde os seis anos o rádio já me intrigava, pois eu ficava imaginando como as pessoas faziam para entrar com seus instrumentos naquela caixa... imaginava como é que eles conseguiam ficar bem pequenos e por onde eles entravam... acho que foi isso que me fez trabalhar no rádio...”

A “arte radiofônica” combina silêncios, ruídos, músicas e palavras. O apresentador de programas ao vivo de auditório é uma espécie de cronista, participando do fluxo do seu programa como protagonista.
No rádio, a música pode manter ou cortar a comunicação, sinalizar ao ouvinte a presença de um momento informativo na programação, provocar valorações, que às vezes podem ser alheias às imagens e textos transmitidas ou ainda identificar programas.

A ênfase dada nos regionais que compunham o quadro de profissionais do rádio é devido à forma instrumental, os tipos de instrumentos, a interpretação e os arranjos realizados pelos regionais conterem indicações para compreender a sua prática em si e as relações com as experiências sociais e culturais de seu tempo,

além de suas características físicas e das primeiras escolhas culturais e históricas, os sons que se enraízam na sociedade na forma de música também supõe e impõem relações entre a criação, a reprodução, as formas de difusão e, finalmente, a recepção, todas elas construídas pelas experiências humanas (MORAES, s.d., p. 211).

A trama histórica junto às relações de produção, difusão e circulação da música popular urbana, nascida no final do século XIX e início do século XX, é marcada por elementos inovadores e bem característicos que devem ser levados em conta. O processo de mistura de estilos e sotaques que levou ao nascimento do Choro ocorreu de forma similar em diferentes países. A partir dos mesmos elementos, danças européias (principalmente a polca), sotaque do colonizador e influência negra, surgiram gêneros que seriam a base de uma música popular urbana nos moldes que hoje conhecemos.

Estas misturas surgem vinculadas com algumas formas de entretenimento urbano pagos como o circo, bares, cafés e teatros, ou não, como festas públicas ou privadas e encontros informais. Assim, se a princípio a geração e criação dessas canções não era destinada ao mercado, gradativamente elas se incorporam a ele, tornando cada vez mais o profissionalismo uma realidade para estes músicos. O Choro praticado em Curitiba teve um percurso muito parecido, aproximando-se muito do choro carioca. Moacyr de Azevedo, também integrante do conjunto Choro e Seresta, lembra que além das serenatas que fez, tocou em bandas de baile de Piraquara, em eventos dos Clube Curitibano e Clube Literário do Portão, da Sociedade do Batel e restaurantes como a Pizzaria Leonardo da Vinci e principalmente, do “Boneca do Iguaçu”, em São José dos Pinhais, pontos de referência para se ouvir a melhor interpretação musical da região.

Seu Moacyr lembra ainda, 30 anos depois do convite do então prefeito de Curitiba, Jayme Lerner, que, ao ouvir uma apresentação do conjunto no Teatro Paiol, convidou-os para tocar num dos espaços culturais que ele estava criando, atraindo público para a Feirinha do Largo da Ordem. Lugar onde tocam até hoje. Desta maneira vão se mostrando os vários espaços, além das rádios da prática do choro.

Para realizar este resgate do choro nos regionais para os programas de auditório durante o período de 1940 a 1970, os depoimentos de músicos que tocaram nestes regionais e apresentadores, produtores ou diretores das rádios em questão serão uma prática que dará voz às pessoas que deles participaram ou de alguma maneira acompanharam sua formação. Ecléa Bosi defende a “memória de velhos”, que não alcança apenas uma memória pessoal, mas também uma memória, social, familiar e grupal. E assim como Ecléa,

O principal esteio do meu método de abordagem foi a formação de um vínculo de amizade e confiança com os recordadores. Esse vínculo não traduz apenas uma simpatia espontânea que se foi desenvolvendo durante as pesquisas, mas resulta de um amadurecimento de quem deseja compreender a própria vida revelada do sujeito (BOSI, 1994, p. 37-38).

E este vínculo de amizade e confiança, na minha pesquisa está sendo criado facilmente pelo fato de eu também tocar um instrumento musical, flauta, e arriscar algumas músicas que fazem parte do repertório do choro, o que deixa o entrevistado mais à vontade depois de colocar-me numa roda de choro.

Considerações

Alguns elementos explicativos neste momento da pesquisa são a profissionalização dos músicos que passam a fazer parte do quadro de contratados das rádios, espaço de improviso para acompanhar cantores e cantoras ou entre as apresentações destes e durante a abertura e fechamento dos programas possibilitando a prática comum da prática do choro, melhor dizendo, a vivência da roda de choro. Existe ainda o contato com músicos do eixo Rio-São Paulo que vinham se apresentar em Curitiba, possibilitando a aproximação e dando continuidade desta prática, já instigada pelos momentos que ouviam choro através do rádio. Levando a manutenção de alguns elementos que distinguem o chorão de outros músicos.
Recuperar a prática do Choro que se expressou em Curitiba, possibilitada pela formação de regionais para trabalhar nas rádios, passa pelo estudo da memória, “então, é da própria lembrança em si mesma, é em torno dela, que vemos brilhar de alguma forma sua significação histórica” (HALBWACHS, 1990, p. 63).
E esta significação aparece também na medida em que jovens procuram estes grandes chorões para aprender a tocar choro, não só nas rodas que eles ainda participam, mas também no Conservatório de Música Popular Brasileira de Curitiba, criado em 1992, de uma maneira mais formal, através da leitura musical, com uma nova geração formada por eles. Aliás, uma das características dos chorões mais novos em Curitiba é o surgimento de uma geração de compositores, fato não tão presente nas gerações anteriores. Ou seja,

Os grupos, no seio dos quais outrora se elaboraram concepções e um espírito que reinara algum tempo sobre toda sociedade, recuam logo e deixam lugar para outros, que seguram, por sua vez, durante certo período, o cetro dos costumes e que modificam a opinião segundo novos modelos (HALBWACHS, 1990, p. 67).

Na realidade, isto faz parte de um movimento nacional, percebido também em Brasília, no Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo. Assim, primeiramente parecendo um fenômeno individual, a memória deve ser entendida como um fenômeno social e coletivo, submetido a flutuações, transformações e mudanças constantes. Seus elementos constitutivos são os acontecimentos vividos pessoalmente e os vividos pelo grupo ao qual a pessoa se sente pertencer, no caso os regionais.

Referências bibliográficas

ARATANHA, Mario de. “A essência musical da alma brasileira”. Revista Roda de Choro no. 2. Rio de Janeiro: mar/abr, 1996
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
CABRAL, Sérgio. A MPB na era do rádio. São Paulo: Moderna, 1996.
CASÉ, Rafael. Programa Casé: o rádio começou aqui. Rio de Janeiro: Mauad, 1995.
CAZES, Henrique. Choro: do quintal ao municipal. São Paulo: Editora 34, 1998
___ . “Rádio e a fixação do “regional” ”. Revista Roda de Choro no. 5. Rio de Janeiro: março, 1997
HALBWACHS, Maurice. A memória coletica. São Paulo : Vértice, 1990.
MORAES, José Geraldo Vinci de. “História e música”, Revista Brasileira de História, v.20, n. 39, São Paulo, s.d.
TINHORÃO, José Ramos. Música Popular: do gramofone ao rádio e TV. São Paulo: Ática, 1981.

Ana Paula Peters é formada em História pela UFPR e especialista em História da Música pela EMBAP, com pesquisa sobre o Choro. Professora de musicalização infantil e de flauta transversal do Conservatório de Música Popular Brasileira de Curitiba. Atualmente está desenvolvendo pesquisa sobre a prática do Choro em Curitiba, no mestrado em Sociologia da UFPR, resgatando a memória dos seus antigos chorões que atuavam em programas de auditórios das antigas rádios PRB-2 e Rádio Guairáca. É integrante do quarteto de flautas doce “Quadrante Sonoro” – www.quadrantesonoro.hpg.com.br - e do grupo “Banza” ,que resgata a música ibérica e afro-brasileira na Bahia dos séculos XVII e XVIII, do tempo de Gregório de Mattos – www.rem.ufpr.br/banza .