Revista eletrônica de musicologia

Volume VIII - Dezembro de 2004

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Por uma renovação do ambiente musical brasileiro: o relatório de Leopoldo Miguez sobre os conservatórios europeus

Mónica Vermes (UFES /USP / Fapesp)

 

A proclamação da república no Brasil (1889) desencadeia mudanças significativas no ambiente musical carioca. A extinção do Conservatório de Música – que fora fundado do Francisco Manuel da Silva (1795-1865) – se dá no mesmo ato que funda o Instituto Nacional de Música, no qual passam a se destacar figuras como Alberto Nepomuceno (1864-1920) e Leopoldo Miguez (1850-1902). Mas, mais que uma mera troca de nome da instituição ou de uma substituição de um grupo administrador por outro, essa mudança coloca no primeiro plano um núcleo de compositores/educadores/“agitadores culturais” que defendem a fundação de uma nova instituição e uma renovação do ambiente musical, e imbuídos de princípios intelectuais, estéticos e acadêmicos particulares.
A própria idéia de república – da qual Miguez e Nepomuceno eram abertamente simpatizantes – é uma das manifestações desse final de século 19 do anseio por uma modernização, conseqüência de uma percepção de atraso do Brasil em comparação particularmente com os Estados Unidos e a França no âmbito político. Em termos musicais, essa modernização se traduz, por exemplo, no abandono da ópera italiana como modelo – cujo representante mais notório no Brasil era Antônio Carlos Gomes (1836-1896) – e a adoção da música romântica alemã e francesa como padrões. Se esse movimento já se fazia sentir desde meados do século, com o crescimento significativo na quantidade de concertos de música sinfônica e camerística, ele chega a um importante patamar com a intensificação das ações do grupo de Miguez/Nepomuceno.
Dentro desse quadro, o relatório sobre a Organização dos conservatórios de música na Europa (1895), elaborado por Leopoldo Miguez e dirigido ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores, revela-se uma fonte importante para entender algumas das premissas intelectuais, estéticas e acadêmicas que serviram de base ao grupo de Miguez.
Neste trabalho analisaremos o relatório de Miguez procurando elucidar as idéias que nortearam as iniciativas de modernização do meio musical carioca no final do século 19 e suas conseqüências mais imediatas.

 

Este trabalho é um resultado inicial e parcial do projeto de pesquisa que estou desenvolvendo desde maio deste ano do Departamento de Música da ECA/USP com apoio da Fapesp. O título do projeto é “Produção musical e pensamento: Rio de Janeiro, 1895-1922” e tem como objetivo central analisar a atividade musical – no Rio e no período indicado – procurando evidenciar a rede de relações entre a produção musical – aqui entendida num sentido amplo, incluindo não só a composição de obras musicais, mas as várias iniciativas que dizem respeito à atividade musical, ensino e ciclos de concertos, por exemplo – com o ambiente político, social e cultural mais largo e, por outro lado, com as correntes de pensamento filosófico correntes na época. Não é uma idéia completamente original nem nova. Arnaldo Contier, por exemplo, já propõe uma abordagem dessa natureza em seu livro Música e Ideologia no Brasil, de 1978:

A discussão em torno de uma nova periodização para o estudo da música brasileira no século XIX brasileiro deve-se fundamentar em uma análise não-mecanicista entre a produção musical, propriamente dita e as suas mediações ideológicas, políticas, intimamente vinculadas ou não a uma determinada classe social. Essa questão de método esboçada nas partes finais deste texto significa um ponto de partida para uma re-definição da História da Música Brasileira, ainda fundamentada em uma visão estética dos fatos históricos e centrada nos compositores oficialmente aceitos pela elite intelectual (CONTIER, 1978, p. 50).

Nos vinte e seis anos que se passaram desde a publicação desse texto tem havido um interesse crescente no estudo do século 19 musical no Brasil e trabalhos relativamente numerosos vêm sendo publicados – alguns de grande importância -, mas acreditamos que continua sendo um território fértil para o trabalho musicológico.

Apesar de entender que nosso trabalho se insere dentro das premissas propostas por Contier, ele está centrado em algumas figuras canônicas – ou “compositores oficialmente aceitos pela elite” – procurando, porém, lançar um outro olhar sobre sua criação e suas iniciativas.

O objeto desta comunicação é um relatório produzido por Leopoldo Miguez (1850-1902) entre 1895-1896 e publicado em 1897 – nessa época ele era diretor do Instituto Nacional de Música -, em que ele analisa dezesseis conservatórios musicais europeus.

Nas comemorações dos 50 anos do Instituto, a Revista Música publicou alguns artigos relacionados a personalidades que haviam marcado a história da instituição. Entre eles encontra-se um artigo (ou transcrição de uma conferência) de Otávio Bevilacqua – "Leopoldo Miguez e o Instituto Nacional de Música" – em que ele comenta a elaboração desse documento:

Em 1895 [Miguez] foi incumbido pelo governo de ir à Europa a fim de estudar a organização dos principais estabelecimentos de ensino musical. Dando cabal desempenho à missão, apresentou, depois, substancioso relatório ao então ministro do Interior, Dr. Gonçalves Faria (27 de fevereiro de 1896). Desta viagem não poucas vantagens advieram ao Instituto. Entre elas pode figurar a adoção do Tratado de Harmonia de Durand, “inovação” que deu aqui novos horizontes ao ensino da Harmonia (BEVILACQUA, 1940, p. 8).

Miguez, no entanto, explica de maneira diferente a gênese desse estudo na introdução ao relatório:

O Sr. Dr. Antonio Gonçalves Ferreira, Ministro da Justiça e Negócios Interiores em 1895, sabedor do meu projeto de viagem à Europa, fez-me a honra de encarregar-me de uma comissão especial para visitar os melhores conservatórios franceses, belgas, alemães e italianos e estudar sua organização (MIGUEZ, 1897, p. 3).

A pequena diferença nas duas versões sugere algumas implicações importantes. É importante observar que existe uma diferença de grau entre ser mandado à Europa para fazer uma pesquisa e aproveitar que se está na Europa para fazer uma pesquisa. A informação imprecisa de Bevilacqua é, no entanto, absolutamente verossímil: a história do Instituto estava fortemente ligada à instauração da República e Miguez gozava de grande prestígio junto ao governo republicano.

Mas as circunstâncias da viagem de Miguez acabaram criando um problema para o rigor dos dados apontados no relatório:[1] ao aproveitar a sua viagem à Europa – possivelmente uma viagem de recreio – para fazer o estudo, Miguez encontrou alguns dos conservatórios em férias – não podendo assistir às aulas e concertos e, em alguns casos, sequer tendo a oportunidade de conversar com seus diretores. A este ponto voltaremos adiante.

Como mencionamos anteriormente, Miguez gozava de grande prestígio junto ao governo republicano, situação partilhada por outras personalidades de seu grupo: o compositor Alberto Nepomuceno e José Rodrigues Barbosa, figura hoje relativamente obscura na historiografia musical, mas extremamente influente na época, misto de crítico musical – escreveu no Jornal do Commercio e em O Jornal – e burocrata.

Essa forte ligação fica bastante clara se rememoramos o histórico do Instituto. O Instituto Nacional de Música (hoje Escola de Música da UFRJ) foi criado através do decreto No. 143 de 12 de janeiro de 1890, que – num mesmo ato – fundou a nova instituição e extinguiu o Conservatório de Música que fora criado em 1841 graças à iniciativa de Francisco Manuel da Silva (1795-1865). A criação do Instituto, um dos primeiros atos do governo republicano, e a entrega da direção a Leopoldo Miguez, através de outro decreto assinado seis dias mais tarde, cargo no qual este permaneceria até sua morte, são sintomáticos do jogo político que estava sendo articulado então no meio musical acadêmico carioca. O duplo gesto – de extinção do Conservatório e da fundação do Instituto – tem um significado mais profundo que a simples reorganização administrativa ou que a incorporação de um patrimônio herdado do período imperial: representa um esforço no sentido de renovar o ambiente musical carioca e, podemos até dizer, um esforço no sentido de fundar um núcleo brasileiro de formação musical, com a construção necessária de uma idéia do que seria o Brasil, ou de quais seriam as necessidades do Brasil que se pretendia fundar.[2]

Chama a atenção a precocidade da fundação do Instituto. Uma explicação aparece no volume da Revista Música que citamos anteriormente, como introdução ao artigo de José Rodrigues Barbosa sobre Alberto Nepomuceno:

Pode-se mesmo dizer que o Instituto Nacional de Música deveu a Rodrigues Barbosa sua existência, pois foi criado nos albores do novo regime político brasileiro em atenção aos esforços pessoais desenvolvidos pelo eminente publicista junto a personalidades com as quais privava e que nele depositavam sua confiança, como o primeiro Ministro do Interior do Governo Republicano, Aristides Lobo. O Decreto No. 143, que fundou o Instituto, foi um presente de aniversário que Aristides Lobo fez a Rodrigues Barbosa, tendo recebido a assinatura do Marechal Deodoro na data natalícia do seu inspirador: 12 de janeiro (BARBOSA, 1940, p. 19).

Podemos observar então um encadeamento de eventos desse mês de janeiro:

• 12 de janeiro – fundação do Instituto
• 18 de janeiro – Miguez é nomeado diretor do Instituto
• 20 de janeiro – É adotado oficialmente o Hino da República composto por Miguez, selecionado por uma banca presidida pelo marechal Deodoro da Fonseca.

Essa proximidade de Miguez e seu grupo do governo tem, é importante ressaltar, um vínculo mais profundo que uma simples associação de troca de favores, que diz respeito à partilha de convicções comuns. Em pouco tempo – isso já é bastante claro em 1898 – haverá, no entanto, um desgaste nas relações entre o governo federal e o Instituto Nacional de Música.

Vamos nos concentrar agora em três outros pontos: o relatório produzido por Miguez em 1896 e as principais mudanças que podem ser observadas na comparação do regulamento do Instituto Nacional de Música de 1892 e no novo regulamento aprovado em 1900.

O relatório é bastante sucinto: contém 35 páginas, das quais 18 são efetivamente de texto, e nas quais Miguez comenta suas impressões e oferece alguns números relativos aos conservatórios que visitou, seguida de uma conclusão com sugestões para o Instituto Nacional da Música. Inclui também uma tabela na qual se apresenta o número de professores das diversas disciplinas, o número de alunos e um índice do número de alunos por professor.

Os conservatórios visitados foram os das cidades de Dresden, Leipzig, Colônia, Berlim e Munique, na Alemanha; Viena, na Áustria; Praga, na então Boêmia; Bruxelas, na Bélgica; Paris, na França; e Roma, Nápoles, Florença, Milão Bolonha, Gênova e Turim, na Itália. A ordem dos conservatórios apresentados parece seguir cronologicamente a ordem da visita de Miguez.

Os comentários sobre cada um dos conservatórios – que têm uma extensão que varia de meia página a uma página e meia para cada instituição – não são sistemáticos, mas alguns tópicos são recorrentes (ainda que alguns deles faltem em algumas instituições): nome da instituição, nome do diretor e suas qualificações, data da fundação, com quem Miguez tratou no conservatório, as disciplinas (principais e paralelas) oferecidas, o objetivo do curso (se se destina a uma formação musical desde os fundamentos ou ao aperfeiçoamento de alunos que já têm conhecimentos musicais), as instalações, e sugestões que poderiam ser aplicadas no Instituto.

O texto, no entanto, se perde no rigor do levantamento, ganha no sabor ao fazer algumas avaliações particularmente subjetivas ou curiosas:

Sobre Viena: “Fazem parte do excelente museu de instrumentos o piano de Schumann e um de Liszt. Entre outras preciosidades vi a caveira de Haydn e a máscara [mortuária] original de Beethoven” (MIGUEZ, 1897, p. 13).

Sobre os conservatórios italianos:

Em quase todos os conservatórios italianos pude observar a falta de disciplina. O aluno ou empregado subalterno não têm a compostura conveniente na presença do professor ou do funcionário superior. Em dois conservatórios fui constrangido a conservar o chapéu na cabeça durante todo o tempo de minha visita, na diretoria, na secretaria, na biblioteca, etc... Assim me foi imposto insistentemente (MIGUEZ, 1897, p. 30).

Sobre Paris: “É censurável a promiscuidade de alunas com alunos. E notórias as relações íntimas que se contraem escandalosamente.” (MIGUEZ, 1897, p. 30).

É importante lembrar, no entanto, uma outra importante dimensão desses comentários: o choque de Miguez com culturas diferentes a partir de códigos de etiqueta que hoje nos são estranhos. A estranheza que podem nos causar essas observações são um lembrete importante de que estamos aqui tratado um “outro”. A observação se torna particularmente pertinente quando percebemos que vários dos problemas enfrentados pelo Instituto de Música naquela época são, por outro lado, muito familiares para nós.

O comentário sobre a “preciosidade” da caveira de Haydn e da máscara mortuária de Beethoven já nos remetem a outra questão, que não é demais ressaltar. Esses objetos não são preciosidades pelo que são como objetos, mas como relíquias que remetem a algo muito maior e muito mais significativo, neste caso, uma tradição estética.[3]

Na conclusão Miguez sintetiza suas principais impressões e aponta que “os conservatórios alemães e belgas são, incontestavelmente aqueles cujos resultados são mais práticos e positivos, e onde a ordem e a disciplina são irrepreensíveis” (MIGUEZ, 1897, p. 29). Não fica claro, no entanto, como é que Miguez teve condições de analisar os resultados do ensino praticado nos diversos conservatórios e os dados apresentados no relatório apontam, seguidamente para dois pontos focais: ordem e disciplina, e rigor no controle das estatísticas da escola. Essa maneira (positivista) de olhar é sintetizada no parecer que Miguez dá às escolas alemãs:

Dizer que na Alemanha a arte é uma religião venerada por todos, é dizer o que todo o mundo sabe. Os seus Professoren são verdadeiros ministros do culto artístico e sinceros apóstolos da evolução. Ali há de tudo a aprender: organizações, programas, prática de ensino, ordem, disciplina, etc. (MIGUEZ, 1897, p. 30)

A avaliação geral resulta, então, numa polarização: de um lado, os conservatórios alemães, a serem seguido como modelo; de outro, os italianos, onde mesmo nos melhores casos – nos conservatórios de Milão, Florença e Nápoles – as coisas não dão certo. Porquê? Por que – segundo Miguez – a cultura italiana é decadente, diluiu-se e, ao tentar um resgate procurando seguir a trilha da arte francesa e alemã, superiores, selara de vez sua própria morte. Vale a pena aqui citar mais longamente o texto de Miguez:

Verdade é que nas escolas oficiais italianas predomina um conservatorismo impertinente, os mesmos antigos e obsoletos métodos são ainda estritamente observados; ao aluno veda-se toda a liberdade para desembaraçar-se de uma infinidade de peias sem utilidade, e, contrariamente ao que se faz em outros países, notoriamente na Alemanha, persiste-se em condenar a priori todo e qualquer método evolutivo.
O que não resta dúvida é que um fenômeno qualquer dá-se na Itália desde a aparição tumultuosa de Rossini, a quem cegamente adoram como um gênio, sem rival no passado, no presente e... no futuro! [...]
Dir-se-ia que vai pouco a pouco vencendo a medonha crise e levantando-se a alturas que não é possível prever desde já, vendo artistas como Martucci, o inteligente diretor do Liceu de Bolonha. Sgambatti, o eminente pianista e compositor discípulo de Liszt, Verdi nas suas últimas obras, e de alguma forma Puccini, Giordano e outros, volverem-se para a Alemanha e aí beberem sofregamente os mais salutares exemplos. Mas... victoriando e pondo em primeira plana aqueles que deixam-se absorver pelos processos de uma escola estrangeira, escola que é a antítese do sentimento nacional, ela, a Itália, reconhece ipso facto a sua decadência, com a que, aliás, não se conforma! Singular psicologia a de um povo na última fase do seu crepúsculo!... (MIGUEZ, 1897, p. 30)

Os pobres italianos parecem não ter muita saída: mergulhados na decadência tentariam sair dela, decadência suprema, adotando uma identidade cultural estrangeira.

Mas e o Brasil?

Os principais problemas que Miguez aponta no Instituto podem ser resumidos em dois pontos: falta de professores e falta de espaço adequado. Aumentando o número de professores e providenciando instalações mais apropriadas seria possível atender ao número crescente de alunos do Instituto (243 em 1890 e 401 em 1895) e implementar iniciativas para reverter a grande desproporção entre o número de alunos homens e mulheres. Dos 401 alunos matriculados em 1895, 347 eram mulheres, 76 das quais no curso de piano (contra 4 homens).

A reversão desse quadro – lembrando que as mulheres não eram consideradas como potenciais quadros para as orquestras profissionais – e a criação de estímulos para os estudantes de cursos menos procurados – viola, contrabaixo, oboé, fagote, clarinete, trompa, clarim, trombone e tuba – visavam a incrementar a formação de profissionais para tocar em orquestras.
Essas preocupações vêem-se refletidas em algumas das mais importantes alterações introduzidas no regulamento reformado de 1900 (em comparação com o de 1892):

• O aumento no valor da gratificação dada aos professores que assumissem uma segunda cadeira;
• A criação de subvenções anuais, destinadas aos alunos dos cursos de canto solo (homens e mulheres), viola, contrabaixo, oboé, fagote, clarinete, trompa, clarim, bombardão e tuba (só homens);
• O estímulo, através de um prêmio em dinheiro (ou o equivalente em material bibliográfico ou partituras), ao emprego de monitores e alunos auxiliares;
• A criação de cursos noturnos – com o objetivo explícito de estimular a formação de orquestras e coros;
• A criação de concertos extraordinários – possibilitar o aluguel do salão do Instituto para a realização de concertos e recitais, tanto por pessoal da casa quanto por pessoas de fora.

Em algumas dessas iniciativas é possível reconhecer a inspiração tomada de conservatórios europeus – de acordo com as observações de Miguez no relatório: aumento das gratificações, conservatório de Dresden; subvenções a alunos de cursos pouco procurados, conservatório de Bruxelas; criação de cursos noturnos, ironicamente, em Turim, segundo Miguez “o último conservatório que visitei, e o mais insignificante de todos”. (MIGUEZ, 1897, p. 18)

O quadro comparativo com que Miguez conclui o relatório é uma grande tabela na qual indica o número de professores por disciplina; o número total de professores; o número de monitores; o número de alunos – homens, mulheres e total; o número de matrículas (em que se conta a matrícula em cada disciplina, incluindo, por exemplo, as várias disciplinas freqüentadas por um mesmo aluno; o número de alunos de piano (homens, mulheres e total); o número de alunos de violino (homens, mulheres e total); e a média de alunos por professor Observando-a em comparação com os problemas do Instituto constatados por Miguez, é possível perceber quanto é útil como argumento para estimular a promoção das mudanças desejadas, evidenciando:

• o grande desequilíbrio na proporção de alunos homens / mulheres (o maior desnível entre os conservatórios que dispunham desses dados)
• o grande número de alunos por professor (o maior de todos, 19)
• o pequeno número de matrículas em uma segunda disciplina (o menor de todos).

Um pequeno, mas interessante detalhe, chama a atenção no relatório: ao falar da biblioteca do Musikverein de Viena, Miguez comenta:

Ali vi a célebre partitura de orquestra, em manuscrito da Sinfonia Heróica de Beethoven, com a dedicatória a Bonaparte raspada a canivete, mas podendo ainda ler-se.
Tive o prazer de verificar com os meus olhos que não era uma anedota esse fato tão comentado da vida de Beethoven, em que se prova quanto aquele espírito elevado era republicano. (MIGUEZ, 1897, p. 13)

A Alemanha, modelo idealizado de cultura, organização e ordem, podia não ser uma república, mas Beethoven era republicano.

Mas volto à pergunta que já havia feito antes: e o Brasil?

De alguma forma aqui fazia-se e consumia-se música. Destaco duas passagens da crônica jornalística que testemunham o gosto do carioca pela música. A primeira passagem, de Machado de Assis, é tomada de uma de suas Notas Semanais de 1878, em que fala de uma companhia de ópera italiana:

Demais, sabe toda a gente que, abaixo do doce de coco, o que o fluminense mais adora é boa música. Haverá, e não raros, que jamais possam suportar uma cena do Cid ou um diálogo do Hamlet, que os achem supinamente amoladores, tanto como os antigos dramalhões do Teatro de S. Pedro: mas nenhum há que não se babe ao ouvir um dueto. E isto vem desde a infância; nas escolas aprende-se a ler a carta de nomes cantando; e ninguém ignora que a primeira manifestação do menino carioca é o assobio (ASSIS, 1878, p. 18).[4]

A segunda passagem – que de certa forma ecoa as palavras de Machado de Assis – é da coluna Teatros e Música do Jornal do Commercio de 1895:

Pode-se assegurar que há muitos anos não temos arte dramática e apenas um ou outro representante que faz recordar os bons tempos em que em nossos teatros apareciam artistas dignos desse nome.
Dizem alguns que a culpa desse desaparecimento viria da imprensa que não compreende a sua missão em matéria teatral, outros que a culpa é do público que foge do teatro quando se anunciam drama ou mesmo comédias em que não há fados, tangos e outros excitantes (...) (Teatros e Música, 1895)

Havia uma vida musical no Rio fortemente centrada na ópera italiana e no teatro musical – apesar do aumento de apresentações de música sinfônica e camerística, principalmente a partir de meados do século 19. As seções de programação dos principais jornais da época anunciam diariamente uma quantidade significativa de eventos na cidade do Rio de Janeiro.
Procurar impor no Brasil um sistema de ensino e um repertório alemães não seria, lembrando dos comentários de Miguez sobre a Itália, curar a decadência com outra decadência? Provavelmente não.

Em carta de 1883 a Carlos de Mesquita, que se encontrava em Paris, Miguez comenta:

Se não fora umas tantas dificuldades que não pude vencer, achar-me-ia neste momento, com minha mulher, em Paris – gozando os encantos desse paraíso terrestre; ouvindo e vendo tudo quanto é aí digno de ouvir-se e ver-se! Quanto é belo tudo isso! E quanto é nulo o que por aqui se faz! Muita razão têm os nossos patrícios, como o amigo Santana Nery e outros, em preferirem viver na pátria das belas-artes e do progresso, a vegetar neste degredo, neste país de botocudos!

De certa forma, equivaleria quase a dizer que o Brasil não existia. Daí advém um sentido fundador na proclamação da República e, no âmbito institucional musical, da inauguração do Instituto Nacional de Música.

Miguez ficou à frente do Instituto até sua morte, em 1902, dentro de uma estrutura administrativa que o fazia extremamente poderoso: absolutamente tudo passava pelo crivo do diretor. Assim, as prioridades de Miguez foram durante os doze primeiros anos de seu funcionamento, as prioridades do Instituto.

Referências Bibliográficas

ASSIS, Machado de. Notas semanais, 1878. Disponível online no endereço: < http://www2.uol.com.br/cultvox/>

BARBOSA, José Rodrigues. “Alberto Nepomuceno”, Revista Música VII, 1o fascículo, 1940, p. 19-39.

BEVILACQUA, Otávio. “Leopoldo Miguez e o Instituto Nacional de Música”, Revista Música VII, 1o fascículo, 1940, p. 6-18.

CHAUÍ, Marilena. Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.

CONTIER, Arnaldo. Música e ideologia no Brasil. São Paulo: Novas Metas, 1985.

MIGUEZ, Leopoldo. Carta a Carlos de Mesquita de 30/11/1883. Divisão de Música e Arquivo Sonoro da Biblioteca Nacional.

______. Organização dos Conservatórios de Música na Europa. Relatório apresentado ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores por Leopoldo Miguez, Diretor do Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro, em desempenho da comissão de que foi encarregado em aviso do mesmo Ministério de 16 de Março de 1895. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1897.

PEREIRA, Avelino Romero Simões. Música, sociedade e política: Alberto Nepomuceno e a República Musical do Rio de Janeiro (1864-1920). 1995. 400 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Curso de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1995.

“TEATROS e Música”, Jornal do Commercio, 16 de março de 1895.

Mónica Vermes é professora da Universidade Federal do Espírito Santo, onde leciona as disciplinas de história da música desde 2000. Sua formação é acadêmica foi realizada no Instituto de Artes da Unesp (Bacharelado em Composição e Regência e Mestrado em Música) e na PUC-SP (Doutorado no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica). Atualmente desenvolve um projeto de pós-doutorado na ECA / USP com bolsa da Fapesp. Seu trabalho de pesquisa está concentrado na música do século 19 e início do século 20, especialmente no Brasil.

Notas

[1] Poderia parecer anacrônico esperar de Miguez um “rigor científico” na elaboração do relatório, mas a grande preocupação – como veremos adiante – com o rigor de dados precisos e quantificáveis (estatísticas, controles) e o fascínio da época pela ciência nos permite entender que era justamente essa a abordagem pretendida pelo autor.
[2] Um elemento que cabe ressaltar, por exemplo, é o fato de os decretos do governo provisório republicano apresentarem uma “dupla datação”: o ano do calendário gregoriano e o ano da república (1890, segundo ano da República).
Sobre o forte entrelaçamento entre música e política no grupo formado em torno do Instituto Nacional de Música, vale conferir a dissertação de mestrado de Avelino Romero Simões Pereira, Música, Sociedade e Política: Alberto Nepomuceno e a República Musical do Rio de Janeiro (1864-1920). Ver referência completa nas Referências Bibliográficas.
[3] Sobre as relíquias, ver a discussão de Marilena Chaui sobre os semióforos em Mito fundador e sociedade autoritária, 2000, p. 11-14.
[4] A epígrafe ao texto de Ênio Squeff em O nacional e o popular na cultura brasileira é que nos remeteu a estes textos de Machado de Assis.