Revista eletrônica de musicologia

Volume VII - Dezembro de 2002

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Brazilian Musics, Brazilian Identities: British Journal of Ethnomusicology 9/i (2000)

Resenhado por Carlos Palombini [*]

Pesquisador Visitante, Fapemig
Departamento de Instrumentos e Canto
Escola de Música
Campus Pampulha
UFMG
Belo Horizonte
Brasil

<palombini@musica.ufmg.br>

Ilustração da capa: artista desconhecido

Resumo

A pesquisa sobre a música brasileira, seja por estudiosos brasileiros ou estrangeiros, se tem pautado pelas místicas combinadas da etnicidade trirracial e da progressiva nacionalização do musical. Enquanto "no centro" recorre-se à etnografia, via de regra, como meio de ilustrar perspectivas teóricas particulares, no Brasil adaptam-se os modelos teóricos à etnografia. A previsibilidade dos lugares aos quais os musicólogos brasileiros se têm dirigido em busca da alteridade musical, porém, evidencia-se, por contraste, na comparação de seus trabalhos com a contribuição dum pesquisador japonês.

Palavras-chave: etnografia, etnomusicologia brasileira, nacionalismo, nova musicologia


Para expandir o British Journal of Ethnomusicology e ressaltar seu perfil internacional, os editores tomaram a decisão de publicar, anualmente, um número dedicado a um tema específico, seguido dum segundo número, de caráter mais genérico. Brazilian Musics, Brazilian Identities é o primeiro destes números temáticos. Como Suzel Ana Reily e Martin Clayton afirmam no editorial, cada artigo averigua como um determinado universo musical se articula com a construção de identidades num setor específico da sociedade brasileira. A geografia, contudo, não é a preocupação principal: o número foi concebido para ilustrar como debates recentes sobre a construção musical da identidade na musicologia estão enformando a pesquisa num contexto nacional específico. Na opinião de Reily e Clayton, enquanto a maioria dos etnomusicólogos sabe muito pouco sobre o trabalho de seus colegas brasileiros, estes, ao contrário, estão bem cientes das últimas tendências acadêmicas a emergirem no centro. E à medida que o centro toma paulatinamente o rumo dum estilo acadêmico no qual se recorre à etnografia sobretudo para ilustrar perspectivas teóricas particulares, no Brasil adaptam-se os modelos teóricos à etnografia. Eis o interesse da contribuição brasileira. Reily doutorou-se em Antropologia Social na USP e leciona etnomusicologia e antropologia social na Queen's University de Belfast.
        Como ela afirma em "Introduction: Brazilian Musics, Brazilian Identities" (pp 1-10), embora relatos de missionários, viajantes e residentes locais datem dos tempos da colônia, a investigação consciente da música brasileira por pesquisadores brasileiros é um fenômeno relativamente recente, que foi instigado pela emergência de sentimentos nacionalistas e começou a tomar forma com o trabalho de Mário de Andrade (1893-1945). Para dar ao leitor uma idéia mais clara de como os artigos do volume se relacionam com debates correntes em círculos intelectuais brasileiros, Reily apresenta um panorama da pesquisa musical no Brasil. Ressaltando "o mito da etnicidade trirracial", segundo o qual a música brasileira seria a "flor amorosa de três raças tristes" (ameríndios, africanos e portugueses, como evocados no verso final da Música brasileira do poeta parnasiano), [1] ela faz uma constatação importante: de modo análogo ao observado por João Hernesto Weber [2] no que concerne à historiografia literária brasileira, os autores de histórias da música brasileira têm freqüentemente projetado suas próprias preocupações nacionalistas sobre o passado, que suas narrativas representam como um processo contínuo e inevitável, no qual a música produzida no Brasil é progressivamente nacionalizada. Este processo de nacionalização tem sido representado por meio duma sucessão cronológica de estilos que veio a adquirir status canônico, a definir o que constitui a "autêntica" música nacional brasileira. Este cânon, por sua vez, foi replicado por pesquisadores estrangeiros como Appleby (The Music of Brazil, Austin, 1983), Béhague (Music in Latin America, Englewood Cliffs, 1979), McGowan e Pessanha (The Billboard Book of Brazilian Music, Londres, 1991), Schreiner (Música Brasileira, Nova Iorque, 1977) e muitos outros. A que ponto as místicas combinadas da etnicidade trirracial e da progressiva nacionalização do musical dominam, pode-se inferi-lo do fato de Reily ter tido tenção de convidar um estudioso brasileiro para escrever sobre as atividades musicais de um ou outro dos principais grupos de imigrantes, mas não ter encontrado ninguém que estivesse realizando uma pesquisa deste gênero.
        "Música Romântica in Montes Claros: Inter-Gender Relations in Brazilian Popular Song" (pp 11-40), de Martha Tupinambá de Ulhôa, da Uni-Rio, desenvolve-se em duas seções. Na primeira, Ulhôa chama a atenção do leitor para a história da vida social em Montes Claros, de suas origens como um centro aonde, no final do século XVIII, a aristocracia se dirigia para assistir à missa mensal, a meados dos anos sessenta, quando, sob a ditadura militar, "os jovens começaram a reunir-se em bares e pizzarias." Na segunda seção, ela analisa três exemplos de canção romântica que foram provavelmente ouvidos em Montes Claros nos últimos cem anos: "Amo-te muito", de João Chaves, [3] "Vingança", de Lupicínio Rodrigues, na interpretação de Linda Batista (1951), e "Detalhes", de Roberto e Erasmo Carlos, na interpretação de Roberto Carlos (1971). Cada seção trata dum objeto diverso (a vida social em Montes Claros e um conjunto de canções) segundo um método distinto (etnografia e análise semiótica da canção). O que as conecta é o foco que partilham em relações intergênero e a natureza diacrônica da abordagem de Ulhôa.
        Em "Gaucho Musical Regionalism" (pp 41-60), Maria Elizabeth Lucas, da UFRGS, mostra como, no seio duma das áreas do país onde a renda é melhor distribuída, o estigma da grossura alçou-se em emblema regional. Focalizando as maneiras pelas quais seu estudo de caso responde "às condições engendradas pelo capitalismo transnacional", Lucas descreve as raízes da identidade gaúcha e sua performance em festivais de música nativista, onde de dois a quinze mil urbanitas classe-média brancos se reúnem, num quadro festivo que dura de dois a quatro dias, ansiosos por cultivar tradições rurais através da exibição de indicadores de gauchismo. A identidade masculina gaúcha, de que se trata aqui, é estereotípica ao ponto de ser percebida como caricaturesca até mesmo no contexto dum sistema de gênero tão polarizado quanto o brasileiro. Questões de gênero, contudo, não estão entre as prioridades de Lucas.
        Traduzido por Reily, "Ethics in the Sung Duels of North-Eastern Brazil: Collective Memory and Contemporary Practice" (pp 61-94), de Elizabeth Travassos, da Uni-Rio, fornece descrições de competições poéticas cantadas nas quais dois cantadores tocam viola e procuram sobrepujar-se mutuamente na arte do verso improvisado. Para Travassos, a vitalidade desta tradição está intimamente ligada à ética que estrutura sua performance. "Ao adentrar a arena da performance, eles (videlicet os cantores) devem esforçar-se por suspender suas identidades sociais cotidianas, neutralizando estes atributos para digladiarem-se enquanto poetas, isto é, enquanto 'iguais'". Em outros termos, "as vantagens reais que os ricos levam sobre os pobres, os brancos sobre os negros, os instruídos sobre os analfabetos, os homens sobre as mulheres, se podem reverter através do talento na arte do verso improvisado".

Xilogravura não assinada (à esquerda) e xilogravura de Dila (à direita), fotografias de Décio Daniel
Combinando descrições vívidas de performances e personagens com um senso agudo de observação, desatrelado de construtos extrínsecos, Travassos compõe um belo texto, onde a questão das identidades começa a ceder lugar à questão, quiçá mais premente, das subjetividades brasileiras.
        Em "Singing Contests in the Ethnic Enclosure of the Post-War Japanese-Brazilian Community" (pp 95-118), Shuhei Hosokawa examina o desenvolvimento histórico e a organização social dos concursos de canto amador conhecidos como nodojiman entre os nipo-brasileiros, analisando como eles contribuíram para forjar uma identidade nipo-brasileira no pós-guerra, precisamente o momento em que os imigrantes japoneses perceberam que sua estada no Brasil seria permanente. Como nota Hosokawa, "a estratégia dos imigrantes japoneses de manter a unidade étnica, demonstrada no contexto dos concursos de canto, destacava-se em nítido contraste com os discursos da sociedade brasileira como um todo, onde a miscigenação articulava a essência mesma da identidade nacional." Praticamente desconhecido em círculos musicológicos nacionais, Hosokawa é Associate Professor no Instituto de Tecnologia de Tóquio, onde ensina teoria e história da música e cultura populares. Suas publicações incluem a coorganização, com Toru Mitsui, dum livro em inglês, Karaoke Around the World: Global Technology, Local Singing (Londres: Routledge, 1998) e a autoria de vários livros em japonês, entre os quais Uma história social do filme na comunidade nipo-brasileira (1999), Samba no país da Enka (1995) e A estética do som gravado (1990), bem como artigos em Cultural Studies, Popular Music, Perfect Beat e Japanese Studies.
        Traduzido por Reily, "The Experimental Music of Hermeto Paschoal e Grupo (1981-93): A Musical System in the Making" (pp 119-42), de Luiz Costa Lima Neto, da Escola Estadual de Teatro Martins Pena, esclarece as técnicas composicionais "excêntricas" empregadas por Hermeto Paschoal e grupo na feitura de sua música "anticomercial". A "autenticidade" do projeto de Hermeto "estruturar-se-ia em torno da excentricidade, os sons (naturais) da vida cotidiana e a virtuosidade (não-comercial)."
A instrumentação excêntrica de Hermeto Paschoal em “Cores”: cigarra, dois pianos, sinos e apitos
Uma digressão pela espectro-morfologia dos ruídos, contudo, interrompe o fluxo da exposição de Costa Lima, com manuseio periclitante da terminologia eletroacústica. É lícito perguntar por que a discussão do uso por Hermeto de varas de ferro como objetos produtores de som deva tomar como referência a gravação por Jonathan Harvey das trinta e três parciais inarmônicas do grande sino tenor da Catedral de Winchester como analisadas por transformada rápida de Fourier para uso na peça comissionada pelo IRCAM em 1980. [4]
        A seção temática conclui-se com um ensaio-resenha sobre Souffles d'Amazonie: les orchestres tule des Wayãpi (1997), de Jean-Michel Beaudet, por Rafael José de Menezes Bastos, da UFSC, e Acácio Tadeu de Camargo Piedade, da UDESC.
        A etnomusicologia, no Brasil, tem desempenhado um papel de liderança no desenvolvimento da disciplina musicológica, de modo geral dominada por edições de música colonial, narrativas mitológicas das vidas de "grandes compositores", exegeses zelosas do leitmotiv nacional-modernista e abordagens pretensamente êmicas das músicas de tradição aural. Se a contradição aparente entre os referenciais teóricos da etnomusicologia e aqueles -- "ecléticos e seletivamente plurais", como disse Agawu [5] -- da "nova musicologia" significarão uma ameaça àquela liderança, é cedo para opinar. Uma vista d'olhos nos programas dos encontros da Society for Ethnomusicology em Detroit (2001) e do British Forum for Ethnomusicology em Royal Holloway (2001) basta para demonstrar que, no hemisfério norte, a miscigenação já está acontecendo. Estaria uma simbiose de métodos por raiar no horizonte do antropofagismo? [6] Seja como for, a presença do ensaio de Hosokawa é suficiente para demonstrar a previsibilidade dos lugares aos quais os pesquisadores brasileiros se têm dirigido em busca da alteridade musical. O momento é oportuno para uma avaliação de temas, trajetórias e metodologias. Para tal, Brazilian Musics, Brazilian Identities é uma contribuição generosa e extremamente bem-vinda.
        Brazilian Musics, Brazilian Identities, o primeiro número do volume nove do British Journal of Ethnomusicology, 2000, foi organizado por Suzel Ana Reily e impresso por Hobbs the Printers Ltd., de Totton, Hampshire, para o British Forum for Ethnomusicology; a coletânea ilustrada tem 167 páginas e é vendida ao preço de 15 Libras Esterlinas, mais frete, por RMS Dooley, Crag House, Witherslack, Grange-over-Sands, Cúmbria, LA11 6RW, Inglaterra (tel. + 44 15395 52286, fax + 44 15395 52013, <musicbks@dooley.demon.co.uk>).

Notas

[*] O autor agradece ao Dr Carlos Sandroni, da UFPE, por sua disposição para discutir tópicos relacionados a esta resenha e a Katia Prates, da UFRGS, e Pedro Durães, da UFMG, pela gentileza com que se dispuseram a editar os arquivos de imagem e áudio, respectivamente. A versão original inglesa apareceu em Ethnomusicology OnLine 8 a 11 de dezembro de 2002, vide <http://www.research.umbc.edu/eol/8/>

[1] Música brasileira

Tens, às vezes, o fogo soberano
Do amor: encerras na cadência, acesa
Em requebros e encantos de impureza,
Todo o feitiço do pecado humano.

Mas, sobre essa volúpia, erra a tristeza
Dos desertos, das matas e do oceano:
Bárbara poracé, banzo africano,
E soluços de trova portuguesa.

És samba e jongo, chiba e fado, cujos
Acordes são desejos e orfandades
De selvagens, cativos e marujos:

E em nostalgias e paixões consistes,
Lasciva dor, beijo de três saudades,
Flor amorosa de três raças tristes.

(Olavo Bilac, 1865-1918)

[2] João Hernesto Weber, A nação e o paraíso: a construção da nacionalidade na historiografia literária brasileira, Florianópolis, Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 1997.

[3] Ulhôa não se remete a nenhuma gravação específica desta canção, apresentada aqui na voz de Tadeu França, em excerto de duo com Saulo Laranjeira.

[4] Para uma recensão entusiástica do artigo de Costa Lima, vide David Treece no número de agosto ou novembro do Journal of Latin American Studies, v. 4, n. 3 ou 4, 2002 (no prelo).

[5]  Kofi Agawu, "Analyzing Music Under the New Musicological Regime", Music Theory Online 2 (4), parágrafo 7, 1996, <http://societymusictheory.org/mto/issues/mto.96.2.4/mto.96.2.4.agawu.html>.

[6] Uma tradução inglesa do Manifesto antropófago, de Oswald de Andrade (1928), está disponível no endereço <http://www.nmu.edu/www-edgar/language/Martin/anthropofagia.html>. Para uma leitura crítica do antropofagismo, com referência às políticas norte-americanas da ação afirmativa, vide "The Law of the Cannibal or How to Deal with the Idea of 'Difference' in Brazil", originalmente uma palestra ministrada por Heloísa Buarque de Hollanda na Universidade de Nova Iorque em maio de 1998, <http://acd.ufrj.br/pacc/paper1.html> e <http://acd.ufrj.br/pacc/literaria/paper1helo.html>. (Sou grato a Rogério Budasz, da UFPR, por ter-me chamado a atenção para este artigo).