Departamento de Artes da UFPR
Revista Eletrônica de Musicologia
Vol. 5.2/dezembro de 2000
Home

SOBRE AS ORIGENS E A EVOLUÇÃO DA MÚSICA

 

Eduardo Reck Miranda

 

Abstract

Estou investigando os mecanismos fundamentais da origem e da evolução da música em proto-mundos habitados por comunidades virtuais de músicos e ouvintes. A origem e a evolução da música não são estudados em um contexto que tome os mecanismos das mutações genéticas como principio, mas sim num contexto que diz respeito as leis e aos mecanismos sócio-culturais. Neste ensaio traço um painel deste projeto de pesquisa. Entre os componentes destacam-se o iluminismo francês, Wittgenstein, chimpanzés falantes e balbucios de bebes. Na medida em que se apresentam os elementos deste cenário interdisciplinar, os conceitos fundamentais da pesquisa serão introduzidos. Introduz-se a seguir a noção de modelagem evolucionista, discutindo-se seus mecanismos fundamentais. Descreve-se por fim duas experiências cujos resultados fundamentam os comentários conclusivos.

 

1. Introdução

No editorial do primeiro número da revista Artificial Life and Robotics, John Casti chama a atenção do leitor para uma mudança que desde a segunda metade do século XX vem ocorrendo na metodologia da pesquisa científica e que certamente influenciará os rumos das artes e das ciências no próximo século. Os cientistas estão deslocando sua atenção da matéria para a informação [CAS 97]. Ele observa que as ciências já não se ocupam prioritariamente do estudo da composição material da natureza mas sim: (i) do funcionamento de seus intricados sistemas e da interação entre seus componentes; (ii) da interconexão de sistemas diferentes; e principalmente (iii) do comportamento global resultante destas interações e interconexões. Graças ao alto grau de desenvolvimento dos computadores os cientistas já podem criar pequenos universos artificiais (ou proto-mundos) para estudar fenômenos até então de difícil estudo. Estes proto-mundos são usados para simular determinados aspectos de fenômenos naturais, estudados em termos da atividade funcional dos padrões de informação trocados durante a interação entre os elementos que constituem o proto-mundo. O surgimento de novos campos de pesquisa como a Inteligência Artificial (IA) e a Vida Artificial (Vida-A) é conseqüência deste novo paradigma científico.

A Vida-A é uma disciplina que estuda o fenômeno da vida através de simulações computadorizadas de teorias biológicas [LAN 97]. Embora teólogos e vários biólogos discordem de Casti argumentando, não sem razão, que simulação não é realidade, as tentativas de imitar o comportamento de fenômenos biológicos em computador tem se revelando uma excelente alternativa para o estudo de certos aspectos dos organismos vivos, muito além das aplicações práticas de princípios biológicos na solução de problemas de engenharia e tecnologia (robótica e nanotecnologia). Uma vez que a Vida-A lida com fenômenos muito complexos, seu progresso tem propiciado o desenvolvimento de várias ferramentas para o estudo destas complexidades. Mais importante, tais ferramentas são utilíssimas em outras áreas de pesquisa que não as Vida-A, notadamente as Ciências Sociais [EPS 96] e a Lingüística [STE 97d]. Nesse ensaio quero demonstrar como o paradigma Vida-A apresenta um imenso potencial musicológico.

Estou em busca dos mecanismos fundamentais da origem e da evolução de formas musicais em proto-mundos habitados por comunidades virtuais de músicos e ouvintes. A origem e a evolução da música não são estudas em um contexto que tome os mecanismos das mutações genéticas como princípio mas num contexto que diz respeito às leis e aos mecanismos dos fenômenos sócio-culturais. Consideram-se as variações de estilos musicais como conseqüência do aparecimento de novas regras e/ou de uma mudança nas convenções vigentes do fazer música. Note-se que utilizo o termo "fazer música" nas acepções de compor, tocar ou simplesmente ouvir. Os estilos musicais, embora, normalmente mantenham suas leis formativas dentro de um contexto cultural, são muito dinâmicos e evoluem constantemente, adaptando-se a novas situações culturais [REC 97]. Se o critério darwiniano de seleção natural em sistemas biológicos considera as aptidões físicas do organismo para a sua sobrevivência, em música estes critérios vão depender dos efeitos das novas regras e de mudanças na experiência do fazer música.

Estudando as formas musicais como "organismos vivos" a musicologia pode beneficiar-se dos paradigmas de pesquisa da Vida-A. Dentre estes, os mais interessantes, recentes e populares são os algoritmos genéticos [KOZ 92], os autômatos celulares [ERM 93 ][WOL 94], a modelagem evolucionista [EPS 96] e a robótica autônoma [STE 95]. Várias investigações musicológicas, particularmente aquelas conduzidas por compositores interessados nos princípios organizacionais de algoritmos geradores de seqüências de padrões [DEG 97] [MAL 99] [MIR 93] [MIR 94], têm lançado mão destes desenvolvimentos. Acredito porém que o verdadeiro potencial musical da Vida-A ainda não começou a ser sistematicamente explorado: a modelagem evolucionista. Por hipótese, os mecanismos que promovem o surgimento e a dinâmica dos fenômenos complexos em organismos biológicos podem explicar as origens e a evolução espontânea das formas musicais.

Na primeira metade deste ensaio traço um painel deste projeto de pesquisa. Entre seus componentes destacam-se o iluminismo francês, Wittgenstein, chimpanzés falantes e balbucios de bebês. Na medida em que se apresentam os elementos deste cenário eclético, os conceitos fundamentais da pesquisa serão introduzidos. Esta primeira metade gravita em torno de dois pólos: a importância da inter-relação entre lingüística e música e a justificativa da opção pela abordagem Vida-A. Introduz-se a seguir a noção de modelagem evolucionista, discutindo-se seus mecanismos fundamentais. Descreve-se por fim duas experiências cujos resultados fundamentam os comentários conclusivos.

 

2. Os jogos de linguagem e a origem dos significados

Wittgenstein [WIT 63] propõe a noção de jogos de linguagem nas Investigações Filosóficas. Tais jogos de linguagem são situações lingüísticas simples cujo intuito é ilustrar um argumento. Imagine-se, o filósofo propõe, uma linguagem cujo objetivo puro e simples é o de estabelecer um elo de comunicação entre um pedreiro e um servente. O pedreiro constrói um castelo de pedras. Existem quatro tipos de pedras: blocos comuns, lajes, pilares grandes e vigas pequenas. A tarefa do servente é passar as pedras para o pedreiro, segundo as ordens recebidas. O vocabulário consiste de quatro palavras: "bloco", "laje", "pilar" e "viga". Quando o pedreiro diz uma palavra, o servente passa-lhe a pedra, que ele aprende a associar com a palavra ouvida. Se o pedreiro diz "bloco", isto causa uma ação do ajudante. O sucesso desta ação está condicionado ao fato de que o ajudante passe o bloco para o pedreiro.

Para o pedreiro, é suficiente que o servente tenha aprendido quatro palavras. Não importa se ele sabe falar Português. Assim, o ajudante poderia em princípio ter aprendido a linguagem simplesmente através de associações entre as palavras e as ações que elas comandam, ao invés de associações com imagens de pedras e/ou conceituações catalogadas na mente. A evidência de que o ajudante aprendeu o significado da linguagem do pedreiro é suficientemente confirmada quando o primeiro age corretamente em resposta aos comandos do segundo. Em resumo, as palavras de uma língua (as sentenças, digamos) possuem significado quando têm uma função no intricado contexto das atividades humanas.

Wittgenstein não trabalhou exclusivamente com a filosofia da linguagem, mas suas noções de jogos de linguagem e origem dos significados baseada na ação, em particular, oferecem uma fundamentação importante para este projeto.

 

3. Será que um dia a Sarah poderá construir castelos de areia?

Desde a década de 60, os esforços dos cientistas para ensinar uma linguagem aos chimpanzés vêm logrando resultados impressionantes. Os chimpanzés Sarah, Nim Chimpski, Washoe e Kanzi [PRE 76] [TER 79] [GAR 89] [SAV 94] chamaram a atenção da imprensa mundial ao aprender sofisticados jogos de linguagem, à maneira de Wittgenstein, com seus instrutores. Washoe aprendeu a comunicar-se com a instrutora através de seqüências de gestos dentre um repertório de mais de uma centena de sinais inspirados na linguagem norte americana de gestos para surdos. Kanzi recentemente apareceu nas manchetes de televisão trocando mensagens com um ser humano ao telefone através de um teclado falante, uma espécie de máquina de escrever que produz voz sintetizada [BIN 98]. Isto demonstra a capacidade dos primatas para aprender uma linguagem. Embora a linguagem em questão seja muito simples, chama a atenção a capacidade dos chimpanzés para criar novas combinações de signos que expressem algo novo e para aprender uma linguagem sozinhos, observando como outros chimpanzés se comunicam entre si.

Ainda que discordem os cépticos dizendo que estes chimpanzés aprenderam a fazer sinais para ganhar uma banana ou outro prêmio, o valor dos experimentos é inegável. Além das técnicas desenvolvidas para ensinar animais, como a pedagogia de Premak [PRE 63], eles colocam em jogo temas relacionados ao desenvolvimento da linguagem nos primórdios da existência humana. Talvez o mais importante deles seja aqui o dogma do elo perdido defendido pela antropologia ortodoxa: a teoria de que existe uma diferença inexplicável e misteriosa entre a raça humana e os outros animais. Os resultados destes experimentos com primatas fornecem indícios convincentes de que não existe elo perdido. No que concerne a capacidade lingüística, existe sim uma evolução das faculdades mentais e motoras. Se nós humanos temos mais facilidade para aprender a falar e usar símbolos e gramáticas, trata-se de um processo evolutivo, de elos evidentes com os primatas.

Neste contexto, a linguagem é melhor estudada não enquanto função de um órgão lingüístico que nasce pronto no cérebro do bebê, como querem alguns estudiosos, mas enquanto fenômeno cultural que surge, ou melhor, se desenvolve, a partir de interações sociais. Durante os primeiros anos vida os humanos aprendem a língua materna nas mais diversas situações através de inúmeros jogos de linguagem. Na medida em que estes jogos e estas situações se tornam mais complexos, a criança desenvolve elocuções e significados interligados em vários níveis, empenhando-se em situações que exigem um entendimento de formas lingüísticas cada vez mais avançadas. Certos termos aprendidos em jogos de linguagem rudimentares são transpostos para contextos mais complexos e vice-versa. Uma criança que aprende a jogar um jogo de construção, montando castelos com peças de Lego, vai construir outras estruturas depois, lidando com o conceito de castelo em contextos distintos (livros de estórias, etc.). Ela vai desenvolver a capacidade de transferir o significado de jogos específicos para outros contextos. A maturidade lingüística é atingida quando se é capaz de entender situações metafóricas como na expressão "fazer castelos de areia" (um sonho dificilmente realizável).

Um chimpanzé pode, em princípio, aprender a fazer um castelo mas não o castelo de areia metafórico. Quero dizer com isso que, ainda que os cientistas consigam progredir em seus métodos de ensino da língua aos macacos, esse tipo de "macaquice" lingüística não será suficiente para aprofundar o conhecimento da capacidade intelectual do homem.

 

4. O balbucio é música

Qual é a limitação dos macacos? De onde vem a maravilhosa capacidade intelectual do ser humano? Não faltam resposta tentativas, dentre elas: "os macacos não são suficientemente inteligentes porque os seus cérebros são muito pequenos" [DEA 97]; "o aparato vocal dos macacos não foi feito para a fala" [LIE 84]; "as nossas sofisticadas capacidades sonsoriais e motoras possibilitam uma melhor gestão do tempo e do espaço, constituindo assim uma plataforma ideal para o desenvolvimento da linguagem" [CAL 83]; "os chimpanzés não possuem o órgão responsável pela linguagem" [CHO 80]. Tratam-se de hipóteses em sua maioria plausíveis que não podem ser consideradas isoladamente. Estas características evoluíram cooperativamente, isto é, elas co-evoluíram. Na medida em que o crânio do primeiros hominídeos foi crescendo, formou-se na região da garganta uma caixa de ressonância adequada à voz, a posição da laringe baixou e nossos sistema sensoriais e motores se aperfeiçoaram. Tudo isso resultou em uma plataforma adequada para o desenvolvimento da fala. Existe contudo um componente importante neste fenômeno co-evolutivo amplamente ignorado por nossos colegas pesquisadores: a música.

A música é um dos fenômenos mais intrigantes da humanidade. Nossa sensibilidade ao tempo, nossa tendência à ordenar informação auditiva e nossa habilidade em classificar e imitar padrões sonoros são características únicas dos seres humanos [STO 93]. Tratam-se de habilidades musicais que formam os mecanismos essenciais para o desenvolvimento da linguagem. Acredito que o funcionamento bipartido de nosso sistema auditivo constitua o motor principal deste mecanismo musical. De forma geral, os bebês são mais sensíveis aos padrões rítmicos no ouvido esquerdo e aos padrões timbrísticos e melódicos no ouvido direito [BES 88].

A título de ilustração, considere-se o fato de que, quando ouvem a fala, os recém nascidos apresentam uma disposição impressionante para extrair pequenas amostragens de sons e imitá-los [JUS 97]. Para extraí-las, o ouvido esquerdo presta atenção aos aspectos rítmicos do sinal sonoro, buscando vestígios demarcadores do início e do fim de porções períodicas do sinal. O sinal sonoro que corresponde a uma vogal é normalmente demarcado por minúsculas erupções não-periódicas, as consonantes. O ouvido direito, por outro lado, presta atenção aos indícios de coloratura: tom da voz, contorno melódico das elocuções. É natural que os bebês se mostrem mais responsivos quando falamos de maneira clara e articulada, com certo exagero no contorno melódico das palavras. Durante os primeiros meses de vida, os bebês balbuciam apenas quando em presença da fala que ouvem. Isto se deve ao fato de que eles ainda estão aprendendo como reagir diante do material bruto da linguagem. Observe-se que praticamente todos os bebês balbuciam. Mesmo os bebês surdos balbuciam com seus braços e suas mãos. Durante este processo de aprendizagem, eles desenvolvem e modelam seus órgãos neuronais e musculares através do reconhecimento e da imitação dos sons vocálicos ouvidos. Preferências no direcionamento da atenção e na imitação dos sons da língua materna começam a se desenvolver como resultado da interação com (da retroalimentação positiva de, diriam os psicólogos) interlocutores. Mais cedo ou mais tarde, a criança começa a formar léxicos e gramáticas, a construir sentenças e a participar ativamente de experiências lingüísticas mais e mais sofisticadas.

Ressalte-se aqui que não quero dizer que as pessoas nasçam com um "órgão musical" pronto para lidar com a linguagem. O que estou sugerindo é que nossa predisposição musical forma um suporte ideal para o desenvolvimento de mecanismos de discriminação e de categorização de sons e conceitos, mecanismos estes que são fundamentais para a linguagem falada. Nossa musicalidade se desenvolve junto com a capacidade da fala à medida em que crescemos.

 

5. E os filósofos tinham razão...

A noção de que a capacidade lingüística humana esteja intimamente relacionada com a habilidade humana de fazer música e apreciá-la foi fervorosamente defendida no século XVII [THO 95] por pensadores importantes do iluminismo europeu. Conjeturas sobre como elocuções primordiais, gritos e vocalizações teriam evoluído a ponto de se tornarem prática lingüística acompanham-se em geral de considerações musicais nos escritos de Condillac e de Rousseau.

No Ensaio sobre a origem do conhecimento humano, Condillac defendeu a idéia de que as primeiras manifestações lingüísticas seriam constituídas por inflexões vocais orientadas para a ação: advertências, gritos, pedidos de socorro, gargalhadas de felicidade, etc. É curioso que Condillac tenha presumido serem estas inflexões acompanhadas de variações não só de timbre mas também de altura (freqüência do som). Ao invés de dar prioridade à invenção de "palavras" novas para ampliar o vocabulário, os primeiros hominídeos tendiam a reutilizar um mesmo tipo de elocução com entoações diferentes, provavelmente variando a altura, o volume e a duração dos segmentos das proto-palavras. As linguagens primordiais, em suma, não apresentavam consoantes mas entonações de vogais e sua prosódia deve ter soado como uma espécie de canção primitiva [ARB 98].

Rousseau defendeu a hipótese de que a fala se desenvolveu a partir de sons grotescos de nossos órgãos vocais. Para ele a canção e a fala têm uma base comum: a paixão. As elocuções vocais eram inicialmente empregadas para expressar sentimentos básicos ("eu estou triste") e os gestos, manuais ou faciais, para expressar idéias racionais ("tenho fome portanto vou caçar"). Rousseau concorda com Condillac que as primeiras línguas faladas podem ter soado como "melodias" de sons vocálicos. Ele explica o surgimento das consoantes de forma interessante. Na medida em que os primeiros hominídeos começaram a interagir entre si, os relacionamentos sociais tornaram-se mais complexos. Esta complexidade das relaçõe sociais forçou a linguagem a deixar de ser apaixonada, em prol da necessidade de expressar idéias de modo claro e preciso. No Ensaio sobre a origen da linguagem, ele argumenta que o surgimento da língua falada foi motivado pela crescente necessidade humana de viver em sociedade e formar comunidades. Devido a este processo de socialização, a quantidade de variações no tom da fala decresceu, abrindo espaço para o surgimento de consoantes. Novas formas de articulações precisaram ser descobertas e, consequentemente, leis gramaticais estipuladas, para governar a formação de seqüências de elocuções. Como a língua materna de Rousseau, as línguas modernas, deixaram de falar aos corações para falar à razão. Na medida em que a língua seguiu o caminho da argumentação lógica, os aspectos "melódicos" das elocuções primordiais evolveram para outra forma de expressão: a música. As formas musicais, conclui-se, desenvolveram-se a partir dos sons sentimentais e emotivos da linguagem das paixões.

Depois de Condillac e de Rousseau, a relação entre as origens da linguagem e da música raramente figurou nos estudos sistemáticos da filosofia pós-iluminista. Os escritos dos dois autores foram mesmo rechaçados pelo romantismo que prevaleceu na Europa do século XIX, na música em particular. Quando interessavam-se por música então, os filósofos mais influentes costumeiramente associavam suas origens ao misticismo, ao oculto e ao esotérico. Tanto que na década de 1880 a prestigiosa Sociedade Lingüística de Paris baniu o tema das origens, devido à onda de escritos especulativos e absurdos que estavam aparecendo. Embora tratem-se de filósofos iluministas, as conjecturas de Condillac e de Rousseau fazem sentido e devem ser resgatadas.

 

6. Modelagem de fenômenos evolutivos

Graças aos modernos métodos de modelagem de fonômenos evolutivos, resultantes de pesquisas em simulações biológicas por computador (e.g., Vida-A), a busca iluminista de uma melhor compreensão das origens da linguagem está sendo retomada com uma pauta promissora [STE 97a] [ARI 98]. A música vai desempenhar um papel importante nesta linha de pesquisa. A investigação do papel da música na evolução da linguagem não pode deixar de conduzir os musicólogos a novas teorias explicativas das origens da música propriamente dita.

Proponho que a música possa ser modelada como um sistema adaptativo de sons usados por um grupo de indivíduos (agentes distribuídos, no jargão das ciências da computação) empenhados em uma atividade musical coletiva. Alguns podem estar ouvindo os sons ("audiência") enquanto outros podem estar envolvidos no processo generativo ("músicos"). Minha hipótese é de que formas musicais resultem da interação entre agentes que se empenham em atividades musicais. Este modelo pode ser comparado a uma sessão de improvisação musical onde pessoas que podem não se conhecer entram na roda e executam sons ou simplesmente ouvem. Um panorama distinto seria um concerto de música clássica para orquestra, onde os músicos seguem uma mesma partitura sob a direção de um regente. Neste caso existe pouco espaço para a evolução das formas musicais no curso da atividade musical.

Nas páginas iniciais do primeiro número do Evolution of Communication Journal, Luc Steels propõe quatro mecanismos fundamentais para o estudo das origens da linguagem: a evolução, a co-evolução, a auto-organização e a formação de nível [STE 97b]. Por motivos didáticos, prefiro o termo "transformação e seleção" ao termo "evolução" originalmente proposto por Steels. Como estes quatro mecanismos aplicam-se também ao estudo de outros fenômenos culturais, adoto-os aqui como fundamento desta pesquisa. Antes de discutir tais mecanismos porém, é importante deixar claro o contexto em que a noção de evolução aparece aqui.

Em História Natural a evolução é normalmente associada à idéia de transição de uma espécie inferior a uma superior. O argumento darwiniano de que os seres humanos evoluíram a partir dos macacos é um exemplo [ULM 83]. Muito apreciada pela Antropologia Cultural do século XIX, o evolucionismo defendia a idéia do aprimoramento do ser humano no decurso linear da história. A crença generalizada de que a cultura da Idade da Pedra é menos sofisticada do que a cultura da Idade do Ferro é seu legado.

Tal abordagem da evolução apresenta problemas de ordem deontológica. Por assumir que o grau de evolução pode ser medido a partir de critérios materialistas e tecnólogicos, ela aceita sem problemas a afirmação de que a música clássica européia é mais sofisticada do que a música rítmico-percussiva da África, porque seus instrumentos são mais sofisticados. Ora, o desenvolvimento tecnológico rudimentar de algumas sociedades não-européias (cito os pigmeus africanos, por exemplo) dá lugar a sistemas sofisticados de organização social e a complexos ritos religiosos, muitos dos quais são incompreensíveis para o estudioso europeu. Uma comunidade remota que vive em um meio onde a caça abunda e o solo é fértil não necessita de armas de caça ou de sistemas de irrigação. Ela vai dar prioridade à criação de um sistema de crenças onde se ofereçam rituais aos deuses em prol da manutenção da riqueza do meio. Nesta pesquisa, a noção de evolução denota a transição de um estado a outro, não necessariamente associada à idéia de melhoria de um ou outro aspecto, mas à noção de aumento do grau de complexidade.

 

6.1. Transformação e seleção

Quando se aplica regularmente certo processo de transformação a um ente com o propósito de criar variantes (mutações), um mecanismo de seleção favorece os resultados mais úteis e, segundo determinados critérios, descarta aqueles considerados supérfluos. Na biologia, um critério pode ser a aptidão para a sobrevivência do organismo mutante. O critério de seleção de uma elocução pode estar relacionado à eficácia do uso dos órgãos articulatórios do emissor e às demandas relativas a seu reconhecimento pelo aparelho auditivo do receptor. O importante é que estas transformações preservem a identidade básica (a informação, no jargão científico) do ente. Do contrário ele é destruído em vez de transformado.

O critério de seleção de objetos sonoros depende das leis da psicoacústica (o equilíbrio entre repetição e variação de seqüências sonoras), da física e da acústica (a flexibilidade dos instrumentos musicais disponíveis). Estes critérios de seleção são fundamentais para o desenvolvimento de modelos musicais evolutivos.

Uma metodologia lingüística plausível para o estudo dos mecanismos de transformação e seleção vem sendo defendida por Steels e colaboradores [STE 97c] [VOG 97]. Inspirados pelos jogos de linguagem de Wittgenstein, eles elaboraram uma série de jogos robóticos para estudar os diferentes processos de formação de linguagem entre os robôs.

 

6.2. Co-evolução

O processo co-evolutivo envolve a interação entre vários processos contíguos de transformação e seleção. Tais critérios de seleção não são estáveis mas afetados pelo ambiente (ou eco-sistema), que por sua vez está em estado de mudança contínua. Enquanto o processo de seleção tende a forçar uma melhoraria de certos aspectos da existência do ente individual, a co-evolução tende a forçar o sistema, de forma coordenada, a um aumento de sua complexidade. Por exemplo, a evolução dos estilos musicais co-existe com a evolução dos instrumentos musicais. Um fenômeno depende de outro.

Consideremos o caso dos instrumentos de teclado. A evolução do pianoforte está relacionada: (a) à possibilidade de variação da intensidade das notas musicais; (b) ao estabelecimento do sistema temperado de afinação, no qual as doze notas da escala musical são separadas por onze intervalos iguais de um semitom. Por um lado, o pianoforte pode produzir uma gama muito maior de variações de intensidade do que o cravo. Por outro, o sistema de afinação temperada solucionou o problema da afinação uniforme dos diferentes instrumentos de um grupo instrumental e ampliou o leque de possibilidades expressivas para a composição. Tornaram-se possíveis agregados harmônicos antes proibitivos em certas configurações instrumentais, bem como modulações tonais dentro de um mesmo movimento ou de uma mesma peça musical sem necessidade de interrupção para nova afinação ou de malabarismos técnicos por parte do(s) intérprete(s) [CAM 87].

 

6.3. Auto-organização

A idéia de auto-organização está intimamente ligada a noção de coerência. Os mecanismos de coerência que se manifestam em sistemas formados por vários agentes distribuídos vêm recebendo a atenção de cientistas de várias disciplinas. Os ingredientes básicos para a auto-organização de um sistema são: (i) um conjunto potencial de variações; (ii) mudanças casuais ou aleatórias; (iii) mecanismos de re-alimentação.

Quando mudanças aleatórias ocorrem sistematicamente em certo sistema, depois de certo tempo algumas se tornam mais efetivas devido ao mecanismo de re-alimentação. Quanto mais uma mudança ocorre mais efetiva ela será. Imaginemos um jogo musical: um grupo de agentes virtuais empenha-se numa sessão de improvisação rítmica sem nenhum conhecimento musical. Cada agente traz o instrumento de percussão que queira, desde que não tenha tido experiência prévia com ele. Os agentes começam a tocá-los juntos de qualquer maneira, inicialmente produzindo uma massa de ritmos altamente desorganizada. O sistema está em equilíbrio. O conjunto de variações potenciais do sistema inclui todos os tipos de ritmos que podem ser produzidos pelos instrumentos de percussão. Em dado momento o agente A produz um padrão sonoro p1 que atrai a atenção do agente B. O agente B tenta imitar o padrão e produz p2. A imitação p2 pode não ser exatamente igual (o instrumento do agente B é diferente do instrumento do agente A) mas o agente A reconhece p2 como uma imitação de p1 e reproduz o p1 original. O agente A acaba de re-alimentar a ação do agente B e o padrão p1 começa a aparecer como um possível foco de atenção no contexto musical. Outros agentes tentam imitar o padrão p1 e aparecem variações. Depois de algum tempo o padrão p1 e suas variações se tornam convenções e formam, com outros padrões resultantes, léxicos de formas e normas musicais. Quando este grupo de agentes emprenhar-se novamente em sessões de improvisação rítmica, estes padrões serão lembrados e repetidos. Quanto mais um padrão é repetido, mais convencional ele se torna. Alguns agentes, quando não estiverem empenhados em uma sessão musical, poderão estar empenhados em outras atividades relacionadas à música, adaptando seus instrumentos para uma melhor produção de determinados padrões ou ensaiando maneiras mais eficazes de produzir estes padrões.

Este panorama musical pode servir de modelo para o estudo do surgimento da linguagem natural, na qual os agentes se empenham em interações lingüísticas. A necessidade de comunicação explícita de idéias e significados engendra normas lingüísticas. As intenções da interação definem as regras do jogo. Nas interações lingüísticas é mais adequado ter-se dois agentes (falante e ouvinte) de cada vez do que vários falando ao mesmo tempo. A natureza do fenômeno evolutivo pode variar em função da intenção do jogo. Uma elocução difícil, dadas as limitações físicas do órgão vocal, nunca será prioritária. Na música esta limitação não aparece: os agentes podem modificar ou inventar seus instrumentos.

Uma considerável variedade de fenômenos culturais parece seguir princípios de auto-organização similares aos que acabamos de descrever. Veja-se o artigo de Washabaugh no Journal of Musicological Research, onde se descreve sumariamente como teria aparecido o estilo flamenco da música popular espanhola [WAS 95].

 

6.4. Formação de nível

A formação de nível diz respeito ao surgimento de convenções (normas, regras) em alto nível de abstração, como as regras sintáticas e semânticas.

Em certo estágio da improvisação musical (conforme acima) os agentes começam a lembrar seqüências de padrões rítmicos agrupados em unidades maiores. Certos sons de curta duração são agrupados em unidades rítmicas devido a similaridades de duração e à proximidade seqüencial. Esta conceituação rítmica dá origem a conceituações mais abstratas, como regras métricas e o sentido de funcionalidade hierárquica: conceito pulso forte versus pulso fraco [BAM 91], por exemplo. Assim, surgem convenções rítmicas múltiplas para agrupamentos e organizações hierárquicas.

A formação de nível é o aspecto menos entendido dos quatro mecanismos evolucionistas supracitados. É necessário muito trabalho ainda para que se possam formular modelos mais claros e eficientes do fenômeno.

 

7. Por um novo paradigma para a musicologia experimental

Os pesquisadores do Laboratório de Ciências da Computação da SONY em Paris estão desenvolvendo ferramentas para o estudo do nascimento e desenvolvimento de sistemas lingüísticos e musicais em proto-mundos virtuais. O sistema Babel para implementação de simulações baseadas na noção de jogos de linguagens já está em operação [MAC 98] [STE97b]. Um sistema para experimentos musicológicos evolucionistas está em fase avançada de desenvolvimento.

Para estudar estes mecanismos básicos da modelagem evolucionista implementaram-se uma variedade de jogos de linguagem em Babel. Eles funcionam segundo um conjunto de regras a definir seu tipo, em outras palavras, o que pode ser dito, quem diz o quê, o que os agentes fazem com as informações, etc. Os jogos de discriminação (discrimination games) têm o objetivo de estudar a formação de nível, isto é, o surgimento de significados em certo vocabulário. Os agentes são robôs equipados com uma câmara. Durante as interações, eles tentam identificar as características --- cores, formatos, posição, etc. --- dos objetos em torno, a fim de formar categorias (classificações). Na medida em que estes robôs tentam ensinar as categorias que criam uns aos outros, surge automaticamente um vocabulário, com palavras e significados [STE 97d].

Várias experiências utilizando autômatos celulares no estudo de processos auto-organizativos das formas musicais [MIR 93] [MIR 94] e da dinâmica dos sons sintetizados eletronicamente [MIR 95a] [MIR 95b] [MIR 98a] foram realizadas por mim. Introduzo agora estas experiências, bem como um caso de jogo de linguagem com relevância musicológica.

 

7.1. Explorando o potencial musical dos modelos digitais de vida orgânica

Autômatos celulares (AC) são técnicas de modelagem amplamente utilizadas na construção de modelos nos quais o tempo e o espaço são discretos (não contínuos) e valores e quantidades são representáveis por um conjunto finito de números reais.

Os AC foram introduzidos nos anos 60 por von Neumann e Ulam para estudar os mecanismo de auto-reprodução biológica. Eles implementaram em computador uma máquina abstrata com capacidade de auto-reprodução, gerando uma cópia de si mesma. Esta máquina consistia de uma grade bidimensional de variáveis metaforicamente chamadas células. Tais células podiam assumir uma quantidade finita de valores ou estados (states). Para maiores informações veja-se o livro de E. F. Cood [COO 68]. Desde então, tem-se inventado uma variedade de autômatos celulares para os mais diversos fins.

Os AC são geralmente implementados como uma grade regular de células. Cada célula pode assumir um conjunto finito de números inteiros. Cada valor é normalmente associado a uma cor distinta. O funcionamento do autômato é representado no monitor por uma seqüência de padrões de células coloridas. Elas mudam, como em um desenho animado, conforme o tique-taque de um metrônomo imaginário. A cada tique do metrônomo, os valores de todas as células mudam simultaneamente segundo um conjunto de regras globais de transição. Estas regras se aplicam simultaneamente a cada célula, que pode ou não mudar o seu estado em função dos valores das células vizinhas.

Para efeito de demonstração, a figura 1 apresenta um AC muito simples. Ele consiste de um arranjo de 12 células valendo, cada uma, 0 ou 1. Estes estados são representados pelas cores branca e preta respectivamente. A cada tique do metrônomo, os valores das 12 células podem mudar simultaneamente segundo um conjunto de regras que determina o novo valor a partir dos valores das duas vizinhas mais próximas. Por exemplo, se uma célula vale 0 e suas duas vizinhas valem 1 ela valerá 0 no próximo tique. Autômatos celulares mais complicados usam configurações de duas ou três dimensões; as células podem assumir um número maior de valores (e de cores); e as regras podem atuar sobre um número mais amplo de vizinhas: 4, 8 ou 16.

 

 
Figura 1 - Um exemplo de AC. A figura à direita mostra as cores correspondentes aos valores das células da figura à esquerda.

 

O objetivo principal destes experimentos foi explorar o potencial dos AC para a modelagem da criatividade musical. Interessava-me sobretudo a composição. Assim, os experimentos investigaram se os AC teriam a capacidade de gerar material musical. Para isto, projetei os sistemas Chaosynth e CAMUS. Chaosynth emprega os AC para controlar os parâmetros de um sintetizador digital de sons [MIR 95a] [MIR 95b] [MIR 98a]. Em CAMUS, os AC foram programados para gerar estruturas musicais como seqüências de acordes, melodias, etc [MIR 93] [MIR 94] [MAL 99]. No que se segue, apresento um aspecto de CAMUS: o autômato "O Jogo da Vida" (Game of Life), de Conway [WIL 98]. Maiores detalhes sobre Chaosynth e CAMUS podem ser encontrados nas referências indicadas. 

 

 

Figura 2 - Exemplo de seqüência gerada pelo autômato "O Jogo da Vida".

 

O Jogo da Vida funciona assim: a cada tique do metrônomo, cada célula de uma matriz bidimensional pode estar "viva" (valor 1, cor preta) ou "morta" (valor 0, cor branca), segundo as seguintes especificações:

(a) se uma célula está morta no tique t ela estará viva no tique t+1 caso 3 de 8 células vizinhas estejam vivas no tique t;

(b) se uma célula está viva no tique t ela estará morta no tique t+1 caso menos de 2 ou mais de 3 células vizinhas estejam vivas no tique t;

Estas condições ou regras aplicam-se simultaneamente a todas as células da matriz. Uma configuração inicial de células vivas pode crescer indefinidamente, gerar um padrão cíclico ou morrer (figura 2). Como implementado por mim, este autômato possibilita a especificação de outras regras além da regra de Conway.

A fim de transferir o comportamento dos AC de CAMUS para a música, projetei um modelo cartesiano representando uma tríade ("acorde de três notas") de notas musicais (figura 3). O modelo tem duas dimensões. A coordenada horizontal representa o primeiro intervalo da tríade, a coordenada vertical o segundo.

 

Figura 3 - CAMUS usa um modelo cartesiano para representar uma tríade de notas.

 

O Jogo da Vida é inicializado com uma configuração de células vivas distribuídas aleatoriamente na matriz no começo da sessão musical. A cada tique, o autômato produz um quadro com células vivas cujas coordenadas são analisadas e utilizadas para determinar as tríades de notas correspondentes. No caso da figura 4, a célula das coordenadas (5, 5) está viva e constitui uma tríade. As coordenadas definem o intervalo entre as notas da tríade. Para uma fundamental dada (desconsidere-se sua origem), a segunda nota da tríade vai estar 5 semitons acima, a terceira 10 (5 + 5).

Figura 4 - Cada quadro do Jogo da Vida produz uma quantidade de tríades de notas musicais.

 

Depois de computar as tríades de todas as células do quadro, o sistema calcula os tempos (início e duração) de cada nota. Para este cálculo o programa computa um código baseado nos valores de células vizinhas (figura 5). Por metáfora, chamamos este código DNA. Ele determina o formato da tríade. Os valores para o início e a duração das notas, em segundos, são calculados por outras funções, desconsideradas aqui.

Os AC tem a capacidade de gerar seqüências musicais interessantes. Várias peças musicais foram compostas usando material produzido por CAMUS. O segundo movimento do quarteto de cordas Wee Batucada Scotica [MIR 98b] foi criado quase que inteiramente por CAMUS. CAMUS produz material musical de um estilo definido, o estilo "jogo da vida". Notável é que este estilo seja musicalmente interessante. Também Chaosynth (vide bibliografia) produz sons interessantes e agradáveis, com alto grau de fluidez e organicidade. Tais fatos constituem evidência de que as formas musicais abstratas e os sons musicais apresentam princípios organizacionais que podem ser modelados com autômatos celulares, embora as técnicas de transferência do comportamento dos modelos para a música pareçam arbitrárias.

 

 
 Figure 5 - CAMUS usa uma codificação temporal para determinar o ritmo das passagens musicais produzidas.

 

7.2. Simulando o nascimento de escalas musicais

Se os resultados destes experimentos são estimulantes do ponto de vista pragmático, eles são pobres no que concerne as origens que me proponho a desvendar. CAMUS gera passagens musicais convincentes em determinado estilo sem que os AC elucidem os mecanismos que originam tal estilo. Não fica claro o significado real do paradoxo: nosso ouvido musical considera interessante um estilo que não apareceu antes no mundo real. O mesmo se aplica aos sons de Chaosynth: nossos ouvidos acham os sons "orgânicos" do sintetizador interessantes e agradáveis mas estes sons não se encontram no mundo natural. Note-se que estamos em busca de respostas empíricas que possam ser demonstradas cientificamente, não de respostas de cunho estritamente filosófico. Isto não significa que umas sejam melhores do que as outras. Elas são complementares. Buscando novas respostas a estas e outras questões, decidi abordar o problema a partir de outro ângulo, explorando o potencial das técnicas de modelagem evolucionista.

O jogo de imitações é uma técnica de modelagem evolucionista que têm sido usada com sucesso no estudo da formação de sistemas fonológicos em comunidades virtuais de agentes falantes [BOE 97a]. Estes experimentos fonológicos foram originalmente propostos por Luc Steels em colaboração com Bart de Boer, um doutorando do Laboratório de Inteligência Artificial da Universidade Livre de Bruxelas.

Minhas adaptações destes experimentos para a pesquisa musicológica implica uma comunidade virtual de agentes, munidos de um sintetizados de voz, um ouvido artificial e um mecanismo de memória. O sintetizador de voz funciona a partir de 3 parâmetros de articulação vocal: (a) a posição horizontal da língua; (b) a posição vertical da língua; (c) o formato dos lábios. O contorno espectral dos sons vocais é semelhante ao conjunto de picos de um vale montanhoso e chama-se tecnicamente "formante" (formant) [MIR 98a]. Os sons vocais possuem normalmente quatro ou cinco formantes proeminentes, cujas freqüências centrais são cruciais para que o ouvido humano caracterize as diferenças entre os sons (figura 6). O ouvido artificial dos agentes é capaz de analisar formantes e reconhecer suas freqüências centrais. O mecanismo de memória armazena o repertório de vocalizações conhecidas pelos agentes, sob a forma de valores dos parâmetros de articulação, associados aos valores de freqüência central dos formantes dos sons correspondentes. Além disso, a memória armazena o número de vezes que determinado som foi utilizado nas interações entre os agentes (vide infra) e outras informações. 

 
Figura 6: Os formantes são cruciais para a diferenciação dos sons vocálicos. A coordenada horizontal representa freqüências, expressas em Hertz, e a coordenada vertical representa amplitudes, expressas em decibéis.

 

No começo de cada sessão, os agentes não possuem na memória nenhum repertório de sons, uma vez que o objetivo do jogo é justamente construir este repertório automaticamente através de interações entre os agentes. As forças que regem a formação do repertório são impostas pelas "fisiologias" dos aparelhos vocal e auditivo. O jogo desenrola-se da seguinte maneira: dois agentes são escolhidos ao acaso para um diálogo. Um dos agentes faz o papel de iniciador do diálogo, o outro de imitador. O iniciador produz um som que pode ser selecionado de seu repertório ou inventado arbitrariamente. O imitador escuta e compara este som com os sons que já conhece. Nesta comparação, os agentes usam uma fórmula euclidiana para medir a diferença entre dois sinais [BOE 97b]. O imitador procura em seu repertório o som que mais se assemelha ao som ouvido e o produz. Se porventura o imitador ainda não tem um som em seu repertório, ele inventa, usando um algoritmo de aproximação, um som qualquer que considere semelhante ao som ouvido. O iniciador compara o som produzido pelo imitador com o som que ele originalmente produzira. Se o som do imitador é similar ao seu, o diálogo foi bem sucedido, se não, o diálogo fracassou. O iniciador comunica este resultado ao imitador através de um sinal não verbal de re-alimentação.

Imediatamente após o diálogo, ambos os agentes atualizam as suas memórias de acordo com o resultado da imitação. Se o diálogo teve sucesso, os agentes incrementam um contador de sucessos para o som em questão. Se o diálogo fracassou, o imitador tenta aproximar o som errado do que ouvira, na expectativa de que, quando participe de um novo diálogo, ele tenha sucesso. Os sons que não tiverem sucesso por muito tempo serão às vezes apagados da memória. No fim deste processo, normalmente os agentes adicionam a seus repertórios um novo som, inventado aleatoriamente.

Dada a simplicidade do sistema vocal e auditivo dos agentes, este jogo funciona somente com sons vocálicos. Os resultados são porém impressionantes. Depois de uma média de 20 mil diálogos envolvendo uma comunidade de aproximadamente 20 agentes forma-se um repertório comum de vogais na memória dos agentes. Além disso, estes sistemas são muito parecidos com os sistemas vocálicos encontrados em línguas humanas naturais [LAD 96]. A figura 7, ilustra um resultado típico de simulações: o repertório de vogais de todos os agentes envolvidos no jogo (20 neste caso) é traçado num único diagrama, onde a coordenada vertical representa a freqüência central do primeiro formante (F1) e a coordenada horizontal representa o somatório das freqüências do segundo, terceiro e quarto formantes (F2). Todos os valores de freqüência são medidos na escala Bark [BOE 97b]. Note-se que os sons dos agentes se aglomeram em torno de valores de formantes que correspondem a vogais.

Figura 7: Um sistema de vogais que resultou de 20 mil diálogos imitativos.

Os resultados destes experimentos são promissores. Eles indicam claramente que formas musicais também podem surgir numa comunidade de agentes providos de capacidades cognitivas e instrumentais suficientes. Seus resultados sugerem o nascimento implícito de um sistema de notas. Atualmente, estou colhendo informações e realizando experimentos para corroborar a hipótese de que sistemas lingüísticos e musicais compartilham mecanismos evolucionistas.

Num artigo recente [MIR 99], demonstrei como um sistema de notas para composição musical pode ser derivado naturalmente das freqüências centrais dos formantes de um conjunto dado de vogais. A figura 8 ilustra um sistema de notas, correspondendo aos valores dos três primeiros formantes (F1, F2 e F3) de cinco vogais ("a", "e", "i", "o" e "u") cantadas por dois tipos de vozes sintetizadas, masculina (M) e feminina (F). Neste sistema, as notas que teoricamente ressonam melhor para certa vogal são indicadas na primeira pauta (de baixo para cima). Elas localizam-se uma oitava abaixo (F0) do valor do primeiro formante.

Figura 8: Um exemplo de sistema de notas derivado de valores de formantes.

A título experimental, sintetizei várias melodias com notas aleatórias para as frases de uma missa latina ("Benedictus qui veni in nomine Domini", "Kyrie eleison", etc.). Observei que as melodias que continham uma boa porcentagem de notas correspondentes aos valores F0 das respectivas vogais (por exemplo, "Be" = 196 Hz, "dic" = 174.61 Hz, etc.) tendiam a soar mais naturais do que as que não continham tal porcentagem. Observei também que, ocasionalmente, algumas melodias apresentavam configurações de porcentagens combinatórias altas e baixas, cujo balanço formava prosódias musicais coerentes. Embora a última observação necessite ser testada sistematicamente, suspeito tratar-se de um forte indício de que mecanismos simples para a formação de discurso musical, baseados na noção de consonância (boa ressonância) e dissonância (ressonância pobre), possam surgir naturalmente da interação de agentes em uma comunidade virtual.

 

8. Conclusão

A musicologia experimental pode beneficiar-se dos avanços da Vida-A, cujos pesquisadores desenvolveram uma variedade de ferramentas para estudar fenômenos complexos e algumas delas são comprovadamente úteis em outros campos além da biologia.

Como me interesso pelo estudo das origens da música, paradigmas de pesquisa da Vida-A como os autômatos celulares e a modelagem evolucionista são fundamentais para minha pesquisa. Correntemente estou usando as técnicas de modelagem evolucionista para investigar como as formas musicais podem nascer e desenvolver-se em proto-mundos artificiais habitados por comunidades virtuais de músicos e ouvintes.

Neste ensaio, revimos alguns aspectos históricos e alguns conceitos filosóficos importantes para meu trabalho: as noções de jogos de linguagem, de formação de significados lingüísticos baseados na ação, a evolução da inteligência humana e a filosofia iluminista francesa do século XVII. Nesta revisão, enfatizei a importância da relação entre a música e a linguagem natural para minha pesquisa. Demonstrei que habilidades musicais são cruciais para o desenvolvimento de capacidades lingüísticas e vice-versa. E introduzi os fundamentos da modelagem evolucionista, acrescentando uma breve discussão sobre os experimentos pioneiros em curso no Laboratório de Ciências da Computação da SONY em Paris.

Acredito que quando entendermos melhor as origens da música, não só poderemos enriquecer nosso "know-how" e projetar ferramentas computacionais mais eficientes para a criação musical contemporânea como também estaremos aprimorando nosso entendimento da inteligência humana e contribuindo para a praxis musical e musicológica do século XXI.

 

Agradecimentos

O autor agradece o Dr Carlos Palombini pela revisão ortográfica e gramatical da versão Portuguesa deste ensaio.


Referências

 

[ARB 98] Arbo, A., "La trace du son: expression et intervalle chez Condillac", L'espace: musique/philosophie, Chouvel, J-M. e Solomos, M. (orgs.), Paris: Editions L'Harmattan, 1998.

[ARI 98] Arita, T. e Koyama, Y., "Evolution of Linguistic Diversity in Simple Communication System", Artificial Life, Vol. 4, pp. 109-124, 1998.

[BAM 91] Bamberguer, J., The Mind Behind the Musical Ear: How Children Develop Musical Intelligence, Cambridge (MA): Harvard University Press, 1991.

[BES 88] Best, C. T., "The Emergence of Cerebral Asymetries in Early Human Development: A Literature Review and a Neuroembryological model", Brain Lateralization in Children, 5. Molfese, D. L. e Segalowitz, S. J. (orgs.), New York: The Guildford Press, 1988.

[BIN 98] Bindon, J., Can Chimps Talk?, http://www.as.ua.edu/bindon/ant101/

syllabus/ chmp_tlk/chmp_tlk.htm, 1998.

[BOE 97a] Boer, B. de, "Generating Vowel Systems in a Population of Agents", Fourth European Conference on Artificial Life - Brighton, Husbands, P. e Harvey, I. (orgs.), Cambridge (MA): The MIT Press, 1997.

[BOE 97b] Boer, B. de, A Second Report on Emergent Phonology, AI-MEMO 97-04, Vrije Universiteit Brussel, AI-Lab, Brussels, 1997.

[CAL 83] Calvin, W. H., "A Stone's Throw and Its Launch Window: Timing Precision and Its Implication for Language and Hominid Brains", Journal of Theoretical Biology, No. 104, pp. 121-135, 1983.

[CAM 87] Campbell, M. e Greated, C., The Musician's Guide to Acoustics, London/Melbourne: Dent & Sons Ltd, 1987.

[CAS 97] Casti, J., "Information versus Matter", Artificial Life and Robotics, 1(1), 1997.

[CHO 80] Chomsky, N., "Rules and Representation", Brain and Behavior Sciences, Vol. 3, pp. 1-15, 1980.

[COO 68] Cood, E. F., Cellular Automata, London: Academic Press, 1968.

[DEA 97] Deacon, T., The Symbolic Species, New York: W. Norton and Co., 1997.

[DEG 97] Degazio, B., "The Evolution of Musical Organisms", Leonardo Music Journal, Vol. 7, pp. 27-33, 1997.

[EPS 96] Epstein, J. M. e Axtell, R., Growing Artificial Societies, Cambridge (MA): The MIT Press, 1996.

[ERM 93] Ermentrout, G. B. e Edelstein-Keshet, L., "Cellular Automata Approaches to Biological Modeling", Journal of Theoretical Biology, No. 160, 1993.

[GAR 89] Gardner, R. A. e Gardner, B. T., "A Cross-Fostering Laboratory", Teaching Sign Language to Chimpanzees, R. A. Gardner et al. (orgs.), pp. 1-28. Albany: State University of New York Press, 1989.

[JUS 97] Jusczyk, P. W., The Discovery of Spoken Language, Cambridge (MA): The MIT Press, 1997.

[KOZ 92] Koza, J., Genetic Programming: On The Programming of Machines by Means of Natural Selection, Cambridge (MA): The MIT Press, 1992.

[LAD 96] Ladefoged, P. e Maddieson, I., The Sounds of the World's Languages, Oxford (UK): Blackwell, 1996.

[LAN 97] Langton, C. G. e Shimohara, K. (orgs.), Artificial Live V: Proceedings of the Fifth International Workshop on the Synthesis and Simulation of Living Systems, Cambridge (MA): The MIT Press, 1997.

[LIE 84] Lieberman, P., The Biology and Evolution of Language, Cambridge (MA): Harvard University Press, 1984.

[MAL 99] McAlpine, K., Miranda, E. R. e Hoggar, S., "Composing Music with Algorithms: A Case Study System", Computer Music Journal, 23(2), 1999.

[MAC 98] McIntyre, A., "Babel: A Testbed for Research in the Origins of Language", Proceedings of COLING-ACL 1998, Montreal, 1998.

[MIR 93] Miranda, E. R., "Cellular Automata Music: An Interdisciplinary Project", Interface / Journal of New Music Research, 22(1), pp.3-21, 1993.

[MIR 94] Miranda, E. R., "Music Composition Using Cellular Automata", Languages of Design, Vol. 2, 1994.

[MIR 95a] Miranda, E. R., "Granular Synthesis of Sounds by Means of a Cellular Automata", Leonardo, 28(4), 1995a.

[MIR 95b] Miranda, E. R., "Cellular Automata Synthesis of Acoustic Particles", Supercomputer, No. 56, 1995b.

[MIR 98a] Miranda, E. R., Computer Sound Synthesis for the Electronic Musician, Oxford (UK): Focal Press, 1998.

[MIR 98b] Miranda, E. R., Quarteto de Cordas: Wee Batucada Scotica, partitura e partes, Porto Alegre: Edições Musicais Goldberg, 1998.

[MIR 99] Miranda, E. R., "The Role of Speech Synthesis in Requiem per una veu perduda", Organised Sound, 3(3), 1999.

[PRE 63] Premack, D, "Rate Differential Reinforcement in Monkey Manipulation", Journal of the Experimental Analysis of Behaviour, No. 6, 1963.

[PRE 76] Premack, D., Why Chimps Can Read. New York: Harper & Row, 1976.

[REC 97] Reck, D., Music of the Whole Earth, New York: Da Capo Press, 1997.

[SAV 94] Savage-Rumbaugh, S. e Lewin, R., Kanzi: The Ape at the Brink of the Human Mind, New York: John Wiley & Sons, 1994.

[STE 95] Steels, L. e Brooks, R., (orgs.) The Artificial Life Route to Artificial Intelligence: Building Embodied Situated Agents, Hillsdale (NJ): Lawrence Erlbaum Associates, 1995.

[STE 97a] Steels, L., "The Spontaneous Self-Organization of an Adaptive Language", Machine Intelligence 15, Muggleton, S. (org.), Oxford: Oxford University Press, 1997.

[STE 97b] Steels, L., "The Synthetic Modeling of Language Origins", Evolution of Communication Journal, 1(1), 1997.

[STE 97c] Steels, L., "Synthesising the Origins of Language and Meaning Using Co-evolution, Self-organisation and Level Formation", Evolution of Human Language, Hutford, J. (org.), Edinburgh: Edinburgh University Press, 1997c.

[STE 97d] Steels, L., "Constructing and Sharing Perceptual Distinction", Proceedings of the European Conference on Machine Learning, Someren, M. e Widmer, G. (orgs.), Berlin: Springer-Verlag, 1997.

[STO 93] Storr, A., Music and the Mind, London: Harper Collins, 1993.

[TER 79] Terrace, H. S., Nim, New York: Alfred A. Knopf, 1979.

[THO 95] Thomas, D. A., Music and the Origins of Language, Cambridge (UK): Cambridge University Press, 1995.

[ULM 83] Ullmann, R. A., Antropologia Cultural, Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1983.

[VOG 97] Steels, L. e Vogt, P., "Grounding Adaptive Language Games in Robotic Agents", Fourth European Conference on Artificial Life - Brighton, Husbands, P. e Harvey, I. (orgs.), Cambridge (MA): The MIT Press, 1997.

[WAS 95] Washabaugh, W., "The Politics of Passion: Flamenco, Power, and the Body", Journal of Musicological Research, Vol. 15, pp. 85-112, 1995.

[Wil 98] Wilson, G. "The Life and Times of Cellular Automata", New Scientist, 8 October 1998.

[WIT 63] Wittgenstein, L., Philosophical Investigations, Oxford (UK): Basil Blackwell, 1963.

[WOL 94] Wolfram, S., Cellular Automata and Complexity, Reading (MA): Addison-Wesley, 1994.

 

Copyright©2000 Revista Eletrônica de Musicologia, vol. 5.2/Dezembro de 2000