Departamento de Artes da UFPR
Revista Eletrônica de Musicologia
Vol. 5, no. 1 / Junho de 2000
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Alguns aspectos da música sacra no Rio de Janeiro no final do século XIX

 
 

Mónica Vermes  

 

Comunicação apresentada no IV Simpósio Latino-Americano de Musicologia - XVIII Oficina de Música de Curitiba, 20 a 23 de janeiro de 2000.

 

Pensar em música sacra no Brasil evoca de imediato uma série de imagens e sons, da qual a música dos primeiros anos da república tipicamente está excluída.

Essa ausência não chega a causar estranhamento. No século XIX, a música passa por um processo de secularização: se até o início do século XIX a produção musical era fomentada fundamentalmente pela Igreja, a partir daí ela conquistará outros espaços. O crescimento e desenvolvimento dos ambientes urbanos, o enriquecimento de uma classe média consumidora de arte acabam estimulando o aparecimento de instituições ligadas à prática musical: editoras, teatros, atividade didática, comércio de instrumentos musicais.

Mas o problema não parece residir no fato de a música sair da igreja para ir para o teatro, mas sim de a música de teatro entrar na igreja. Cernicchiaro [1] dedica todo um capítulo à "decadência da música sacra", Luiz Heitor [2] fala também da "decadência dos serviços musicais nas igrejas do Rio de Janeiro" referindo-se ao final do século XIX. Essa decadência não trata de ausência, mas da presença considerada equivocada de elementos musicais emprestados da lírica italiana. Fazia-se música sacra, o que não se fazia era música sacra 'adequada'.

Convém observar, no entanto, que os autores referidos apresentam suas críticas no período posterior ao Motu Proprio De Musica Sacra de Pio X (1903), documento pontifício que determina os fundamentos da prática musical na Igreja Católica [3]. Poderíamos então atribuir ao menos parte da rejeição ao repertório praticado a uma aplicação retrospectiva de um paradigma posterior.

 

Surpreende então encontrar nas páginas do Jornal do Commercio entre 1895 e 1898 uma campanha pela reforma da música sacra. Tal campanha é lançada pelo então crítico do jornal, José Rodrigues Barbosa, em um artigo publicado a 7 de outubro de 1897 e rapidamente encontra apoio em várias personalidades do ambiente musical carioca, particularmente Alberto Nepomuceno, cujas cartas ao crítico aparecem publicadas no mesmo jornal. Entremeada de interrupções, a campanha chega a um clímax em 1898 do qual trataremos adiante.

As práticas que se pretende expurgar com a reforma aparecem exemplificadas em artigos de Nepomuceno [4]:

 

É preciso acabar com o costume vergonhoso de executar antes da entrada dos officiantes a symphonia do "Guarany" ou "Cheval de Bronze" ou "Pique Dame" ou "Zigeunerbaron" ou "Bocaccio", etc... etc...

É preciso acabar com essa música despida de senso, composições em que o texto sagrado devia ser substituído pelos couplets mais sugestivos da mais suggestiva revista de fim de anno; e que mesmo nem o mérito têm de serem feitas por músicos que conheção seu "officio".

É preciso acabar com a falta de senso artístico dos adaptadores dos textos sagrados do "O Salutarius" (sic), "Santum Ergo" (sic), etc... etc..., a melodias de sentimentos profanos e direi mesmo de sentimentos que manifestão a degradação do nível artístico do indivíduo, taes como "Ocello neri" (sic) e "varrei morir" (sic), etc... etc...

 

Que remédio se indica para a correção desses 'desvios'? A proposta de Nepomuceno é que se crie uma associação que imponha a obediência ao Regulamento para a Música Sacra aprovado pelo papa Leão XIII e publicado pela Sagrada Congregação dos Ritos e, mais tarde, a fundação de uma Escola de Música Sacra, destinada a preparar músicos, cantores, compositores e seminaristas [5].

Finalmente o arcebispo do estado--monsenhor Luiz Raimundo da Silva Brito--nomeia uma comissão para avaliar projetos de reforma da música sacra e três propostas são apresentadas: do padre Pedro Hermes Monteiro, do cônego Velasco Molina e do compositor Alberto Nepomuceno. A proposta do terceiro, baseada no Regulamento supracitado, é aprovada.

 

Paralelamente - e muitas vezes misturando-se a esta mobilização - o visconde de Taunay publica na Revista Brasileira e no mesmo Jornal do Commercio uma série de artigos defendendo e pregando a difusão--edição e execução--da obra do padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830). Tais artigos, organizados por seu filho, Afonso d'Escragnolle Taunay, resultaram no livro Uma grande glória brasileira--José Maurício Nunes Garcia, ao qual se soma o volume Dois artistas máximos: José Maurício Nunes e Carlos Gomes, ambos editados em 1930 em São Paulo.

A origem 'mítica' do interesse de Taunay pai pela obra de José Maurício é narrada por Taunay filho na introdução ao primeiro livro. O fato teria ocorrido em 1872, na Capela Imperial, ao assistir à Missa do Espírito Santo, antecedendo os trabalhos do Parlamento, do qual o visconde era membro [6]:

 

Terminando o ofício divino, permaneceu no templo, a fim de indagar de quem eram as soberbas harmonias que acabara de ouvir. Interrogou ao velho cantor Bento das Mercês. "Por que quer o senhor saber-lhe o nome?" Retrucou-lhe o músico carrancudo e rebarbativo. - Por ter gostado imenso da sua música. - Pois não sabe que é o grande José Maurício Nunes Garcia? Negativamente abanou a cabeça o curioso inquisidor. - Eis aí, fulminou o velho cantor depreciativamente. E é deputado! E é deputado!

 

Mesmo que o saboroso 'causo' seja apócrifo, a campanha de Taunay em defesa da obra do padre foi real e alcançou resultados práticos e palpáveis: foi feito o primeiro levantamento de suas obras existentes na Catedral; em 1897, se conseguiria a impressão, através de subscrição pública, da Missa de Réquiem e, no ano seguinte, da Missa em si bemol pela casa Bevilácqua; em 1898 são cantadas a Grande Missa de 1826 (Missa Festiva) e a Missa em si bemol nas cerimônias de consagração da Igreja da Candelária; e, também graças a sua intervenção, uma importante coleção de obras do padre, do espólio de Bento das Mercês e pertencente a sua sobrinha--Gabriela Alves de Souza--foi adquirida pelo governo federal e entregue ao Instituto Nacional de Música [7].

Como havíamos comentado, os dois movimentos--pela reforma da música sacra e pelo resgate da obra de José Maurício--aqui se misturam: a apresentação da Missa Festiva na inauguração da Candelária foi regida por Alberto Nepomuceno quem, junto com Leopoldo Miguez, copiou e revisou algumas das obras do padre; as duas missas editadas em 1897 o foram com a parte orquestral em redução para órgão ou harmônio de Nepomuceno; Taunay participa em 1898 da comissão que escolhe o projeto de reforma de Nepomuceno.

É interessante observar que as únicas obras sacras compostas por Nepomuceno que estão datadas são posteriores a 1895 [8], ou seja, acreditamos que tenham aparecido atreladas à campanha. Nelas o compositor despe-se de sua verdade musical, para servir a uma causa [9], ou "cruzada santa" como a ela se refere o próprio compositor [10]. Não é a única situação na qual vemos o compositor se bater entre terrenos (aparentemente) inconciliáveis. Ao se engajar na nacionalização da música brasileira de concerto, encontrara-se já numa encruzilhada delicada: como ser brasileiro sem deixar de ser erudito (europeu) e agora como ser religioso sem deixar de ser romântico (profano).

Se a questão da nacionalização da música é parcialmente resolvida pela via literária (o uso de textos em português nas canções), a questão da música sacra vai ser resolvida num gesto nacionalista, através do resgate do padre José Maurício Nunes Garcia. Encontra-se um exemplo que vai ao mesmo tempo fornecer o modelo de uma música sacra 'adequada' e constituir o pilar de uma ancestralidade musical nacional, atendendo assim ao anseio romântico de um passado glorioso. Lembrando as palavras de Guilherme de Melo [11]:

 

No tempo do Império, cada cidadão que subia um grau na escala das posições sociais, ia procurar na sua ascendência uma afinidade cujos títulos de fidalguia o enobrecessem.

Hoje, porém, o maior orgulho dos brasileiros é correr em suas veias, tingindo-lhes as faces tisnadas pelo sol dos trópicos, sangue dos nossos aborígenes.

 

Por outro lado, perguntamo-nos qual foi a fonte, nesse outro final de século, de tamanho afã no cuidado com as coisas da igreja. Uma primeira resposta seria a existência de uma sincera religiosidade, mas, particularmente no caso de Nepomuceno, tendemos a aceitar a interpretação de Avelino Romero Pereira: tratava-se de uma área profissional promissora a ocupar [12].

A música italiana que tanto incomodava ao invadir o templo, na verdade incomodava em qualquer lugar, alvo preferido do núcleo de intelectuais de pendores wagnerianos que formava o Centro Artístico (entre os quais estavam Nepomuceno, Miguez, Coelho Neto, Luís de Castro e José Rodrigues Barbosa).

As grandes estrelas musicais no Rio de final de século XIX são decididamente a ópera, a música sinfônica e a música de câmara, mas acreditamos--e esperamos ter demonstrado aqui--que a música sacra também se constitui em uma área de pesquisa rica e promissora.

 

Notas e Referências Bibliográficas

 

[1] CERNICCHIARO, Vincenzo. Storia della musica nel Brasile: dai tempi coloniali sino ai nostri giorni (1549-1925). Milão: Riccioni, 1926, pp. 165-172. [volta]

[2] AZEVEDO, Luiz Heitor Corrêa de. 150 anos de música no Brasil (1800-1950). Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, pp. 41. [volta]

[3] Ver SOUZA, José Geraldo. Apontamentos de música sacra. São Paulo: Livraria Salesiana, 1950, pp. 83-99. [volta]

[4] Jornal do Commercio, 7 de outubro de 1895. [volta]

[5] Jornal do Commercio, 8 de janeiro de 1898. [volta]

[6] TAUNAY, Visconde de. Uma grande glória brasileira: José Maurício Nunes Garcia. São Paulo: Melhoramentos, 1930, p. 5. [volta]

[7] TAUNAY, Alfredo d'Escragnolle. Exposição comemorativa do 2° centenário do nascimento de José Maurício Nunes Garcia. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1967, p. 40. [volta]

[8] Convém observar que há várias discrepâncias nos dados relativos às obras de Nepomuceno apresentados no Catálogo Geral de Sérgio Alvim Corrêa (Rio de Janeiro: Funarte, 1996), na Enciclopédia da Música Brasileira (São Paulo: Art/Publifolha, 1998), tanto na lista de obras quanto nas datas atribuídas. [volta]

[9] José Geraldo de Souza fala no "estilista aprimorado [que] abandonou o romantismo próprio de criador de canções para apresentar, em suas obras sacras, apenas o esteta recolhido". Ver SOUZA, José Geraldo de. História da composição sacro-musical no Brasil. Petrópolis: Música Sacra, set.-out. 1957, p. 166. [volta]

[10] Jornal do Commercio, 7 de outubro de 1895. [volta]

[11] MELO, Guilherme de. A música no Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947 (primeira edição de 1908). [volta]

[12] PEREIRA, Avelino Romero. Música, sociedade e política: Alberto Nepomuceno e a República Musical do Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995, pp. 156-160. [volta]

 

 Esta versão ©2000 Revista Eletrônica de Musicologia 5, no. 1 (Junho de 2000)

Mónica Vermes é Mestre em Música pelo Instituto de Artes da UNESP - Universidade Estadual Paulista (1996) e cursa atualmente o doutorado em Comunicação e Semiótica na PUC-SP sob orientação do prof. Dr. Arthur Nestrovski. Professora do Centro de Artes da UFES - Universidade Federal do Espírito Santo. [volta]