Departamento de Artes da UFPR
Revista Eletrônica de Musicologia
Vol. 5, no. 1 / Junho de 2000
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O jagunço da alta classe média brasileira gosta de Chopin

 

Carlos Palombini

 

Synteesi 1/1999: 54--6, Helsinki: Suomen Semiotikan Seura

Leonardo Music Journal 9, Cambridge: MIT Press, 1999

 

No início do mês de abril de 1999, professores, funcionários e alunos do Departamento de Música da Universidade Federal de Pernambuco, em Recife, foram convidados para um recital de Arnaldo Cohen, pianista brasileiro radicado em Londres, e solicitou-se que confirmassem presença. O convite foi formulado pelo Banco Sudameris, afiliado ao Banque Sudameris de Paris e controlado pelo Grupo Banca Commerciale Italiana de Milão. Sudameris está abrindo sua agência universitária nas instalações recém inauguradas do Centro de Convenções da Universidade Federal de Pernambuco, onde o recital se realizaria.

 

O que viria a ser, numa história de revoltas e traições, o estado de Pernambuco, teve sua origem em um dos primeiros sucessos administrativos da jovem colônia portuguesa. Rica em pau Brasil, a região foi disputada por holandeses, franceses, espanhóis e piratas ingleses. A cidade de Recife cresceu às vistas de Olinda --- patrimônio histórico da humanidade --- como a contrapartida comercial da aristocrática vila, gradualmente assumindo a liderança econômica até chegar à posição de metrópole do nordeste brasileiro. Nestas praias, o Brasil foi descoberto por Pinzon e não por Cabral e os ferozes índios Caeté devoraram o infeliz Bispo Sardinha, antecipando os antropófagos urbanos. Hoje, santos americanos dos últimos dias passeiam pela cidade seduzindo com louridão sanificada mamelucos, cafusos, mulatos e mestiços.

 

Pernambuco vangloria-se da mais antiga aristocracia do país. A Senhora Carmem Mayrink Veiga, antigamente uma das dez damas mais bem vestidas da sociedade carioca e uma beldade, hoje ganha a vida aqui, mantendo as camadas inferiores informadas sobre o permitido e o proibido pela alta etiqueta nas páginas do equivalente local ao Sun londrino (devorada que foi sua fortuna por taxas de juro extorsivas cobradas sobre contribuições previdenciárias de antigos empregados, que ela costumava tomar de empréstimo ao erário público): "naquele tempo os homens costumavam usar casaca... hoje eles se queixam para vestir um paletó!" Tratava-se de meu début na sociedade local e eu não desejava estar nem excessivamente nem insuficientemente vestido: sapato de camurça marrom claro, meias brancas (suburbano em Londres mas comme il faut em Recife), calça bege claro, a melhor camisa branca (com botões de madrepérola), paletó sob medida de linho terracota e uma longa corrente prateada entre o bolso da calça e o cós. Para dar um toque cafajeste, um pouco daquela fantástica cera gel que eu trouxe de Dublim e, para finalizar, as madeiras exóticas de Ever by Applewoods. "Carlos... como você está bonito!", a vizinha balbuciou embasbacada quando eu fechei a porta.

 

Embora quem ganhe mais de mil e trezentos Reais por mês não pegue ônibus no Brasil, eu continuo convencido de que nem sempre se devam adotar hábitos nativos nas regiões tropicais. Um assento à esquerda oferecia a vista dum belo par de coxas à direita e sem maior delonga eu me sentei. Perdido em contemplação, fui despertado pelos ruídos de vidro batido e quebrado, gritos agudos e miríades de cacos aterrizando em minha face. Damas se acocoravam, assalto e estupro estampados no rosto. Não mais perturbado do que o General Giuseppe Federico von Palombini após a derrocada do império napoleônico, olhei em torno avaliando a probabilidade de um segundo míssil e ponderei a sabedoria de atrelar-se o destino à visibilidade de dotes carnais. Uma pedra jogada por uma das inúmeras crianças que perambulam pelas ruas de Recife atravessara uma janela à direita, bem atrás daquelas coxas, na altura correspondente a onde eu sentava-me à esquerda, antes de sair por uma janela à esquerda, dois assentos atrás do meu. Eu fora salvo pelas leis imponderáveis do movimento relativo.

 

No Brasil faz-se fila para tudo. Em São Paulo, na agência Consolação da VARIG, faz-se fila para saber se faz-se fila ou não. Em Recife, na agência Cidade Universitária do Banco do Brasil, faz-se fila por uma hora para depositar um cheque. Quem ganha três salários mínimos é cliente especial e clientes especiais fazem filas especiais. Quem ganha dez salários mínimos é cliente duplamente especial mas clientes duplamente especiais fazem filas simplesmente especiais. Uma hora antes do concerto, o Centro de Convenções oferecia duas opções de fila. Escolhi a menor; era a mais lenta. Com todo o aspecto de correntistas de um banco europeu de clientela seletíssima, um cavalheiro atarracado, uma dama obesa e uma donzela roliça chegaram, a todo o vapor. O cavalheiro pôs-se a insultar um par de damas que trocava idéias com a recepcionista em tempo lento. Enquanto isso, sua esposa tentava tomar o meu lugar. Tendo conseguido pôr a fila em movimento com seus berros, o cavalheiro tratou de propeli-la com sua barriga. Assim, num átimo, eu estava roçando ombros e partes íntimas com os altos escalões da sociedade financeira. Na sala de concertos a conversação oscilava entre o italiano básico ("um scherzo?") e os bens de raiz ('minhas casas de veraneio'). Às nove em ponto, um par de atendentes abordou duas senhoritas que, há meia hora, ocupavam a primeira fila. As senhoritas foram removidas. Seus assentos foram reservados. O Magnífico Senhor Reitor foi introduzido e escoltado àqueles assentos. Trocaram-se tapinhas nas costas. Uma tela tomou o proscênio. Sudameris e as lutas do povo brasileiro eram simplesmente a mesma coisa. O representante local subiu ao palco. Ele assegurou-se de que havíamos compreendido.

 

Arnaldo Cohen foi aplaudido com alívio. Com técnica impecável, ele deu vida aos contrastes dramáticos e às transições variadas das Quatro baladas de Chopin. Em meio à Terceira, um fortíssimo lançou-me para fora da sala nas profundezas da música. Eu emergi. Serviam-se bebidas. Os refrigerantes circulavam livremente. O branco italiano era apanágio dos mais aptos. Os ouvintes foram convidados a retornar às suas poltronas. Os renitentes foram gentilmente empurrados. O Magnífico Senhor Reitor subiu ao palco. Sudameris foi congratulado e "uma universidade pública e de qualidade" foi saudada. Com uma execução quase impressionista do Segundo noturno, Arnaldo Cohen alçou-se às alturas rarefeitas da histórica interpretação do Noturno em ré bemol por Lipatti. Seguiram-se a Fantasia-improviso, o Terceiro estudo opus 10, o Primeiro e o Décimo segundo estudos opus 25, o Primeiro e o Segundo scherzi. Tendo aberto caminho entre tossidas terminais, relógios japoneses e telefones celulares "como um homem que aceita todas as coisas, e as aceita em espírito de frio destemor", Arnaldo Cohen foi ovacionado de pé. Ele replicou com uma Valsa do minuto minuciosamente burilada, soberbamente fraseada e incrivelmente nova. À meia-noite e trinta o Estudo patético de Scriabin encerrou a sarau.

 

"Sintetizar e estabilizar uma expressão musical de base popular, como um meio de conquistar uma linguagem que reconcilie o país na horizontalidade de seu território e na verticalidade de suas classes (elevando a cultura rústica ao âmbito universalizado da cultura burguesa e fornecendo à produção musical burguesa a base que lhe falta)", assim José Miguel Wisnik resume o programa do ciclo modernista de nacionalismo musical (O coro dos contrários, 1977, citado por Béhague em Heitor Villa-Lobos, 1994). A classe média gosta de Chopin. A violência que durante séculos o proprietário rural perpetrou contra o escravo foi democratizada por décadas de ditadura militar e sancionada pelo regime democrático (Page, The Brazilians, 1995). Na política brasileira hoje, não é o rústico coronel baiano que se alça ao âmbito universalizado da cultura burguesa, é o intelectual cosmopolita paulistano que se rebaixa ao âmbito da brutalidade burguesa nacionalizada. Como o famoso casaco de peles com o qual o Ministro da Fazenda, Senhorita Cardoso de Mello, tentou impressionar Suas Altezas Reais o Príncipe e a Princesa de Gales numa recepção no Rio, a trama da sociedade brasileira está irreparavelmente roída pelas traças. Trucidados ou proscritos, só os índios se salvaram. Eles entesouram a nação que poderia ter sido. Ena mokocê-cê-maká (o menino está dormindo na rede).

 

© Leonardo Digital Reviews, 1999
 Esta versão ©2000 Revista Eletrônica de Musicologia 5, no. 1 (Junho de 2000)