Departamento de Artes da UFPR
Revista Eletrônica de Musicologia
Vol. 4/Junho de 1999
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Segundo Simpósio Brasileiro de Computação e Música: o CD

 
Computer Music Journal 21 (1): 76, Cambridge: MIT Press, 1997

 

Palavras sobre música normalmente se enquadram na categoria gramatical mais fraca: o adjetivo. O Pericón de Conrado Silva é surpreendente, as Saudades de Ouro Preto de Robert Willey são ecléticas e sentimentais, a Noite cibernética de Vitor Lazzarini usa o vocoder sem muita sutileza. Barthes propõe um jogo de salão: falar de música sem empregar adjetivos. Eletrocañas de Carlos Cerana e Diego Losa vai da monodia à morfologia passando pela polifonia. /Cartas/rs95.car é uma trama gerada por computador que Aluízio Arcela apresenta como um objeto do mundo natural; nos perdemos na contemplação de seu tecido.

Piece of mind abunda em eventos. Um som inicial semelhante ao de um sino com allure distinta prepara o ouvido para critérios de manutenção. Allure e grão deveriam encadear os objetos sonoros. Uma grande variedade de fenômenos físicos dá origem às percepções de allure e grão: corpos produtores de som heterogêneos, diversos processos de excitação, manipulações ostensivas. Em vez de tornar causalidades irreconhecíveis ('desnaturalização', como pregada pela música concreta), Celso Aguiar as torna irreais ('desrealização', como praticada pela música concreta). O embate entre música e enredo é inevitável. Já Pyrócua beira o minimalismo. Ralf Ollertz transmuta e perfila com maestria as matérias de um ensemble inusitado: piano, flauta, violino e aquecedor de água.

Olivine Trees questiona sua própria possibilidade. O tema é a dicotomia pop/erudito. Fiat sonus e um jogo bem articulado de formas e matérias que uma célula dançante no baixo pontua e alicerça. Desvelando a célula, Olivine Trees explode em pop. Fiat sonus de novo e... Olivine Trees está fadada ao pop. O acorde final se precipita num estrondoso crash. Estrelando Chaosynth e os espectros mais escuros do humor de Miranda.

Trabalhando com instrumentista e instrumento virtuais, Steven Pope cria um diálogo entre o grão harmônico real das ressonâncias de sino e o grão descontínuo virtual dos ataques sucessivos. À medida em que o tempo é acelerado com feeling mecânico, a sucessão de ataques se aproxima do patamar do grão. Mas este contraponto a duas vozes permanece um perpétua possibilidade: o intérprete virtual dos 168 sinos virtuais de Pope impõe seus limites humanos à velocidade. Estes limites são partilhados &emdash; em caráter fatual no palco &emdash; pelos bailarinos virtuais do CD: Bat out of Hell é música para balé.

Mario Verandi recolhe figuras de flamenco das quais extrai floreios eletroacústicos que se hipertrofiam e recolhem ao flamenco de onde partiram. Reprodução e criação &emdash; a dicotomia primordial do meio &emdash; são controladas pelo gesto enfático do flamenco que Verandi recria. Figuras flamencas infla e desinfla. Neste movimento, drama e música se encontram, reprodução e criação se combinam, realidade e devaneio se confundem.

Com ferramentas poderosas, economia de meios e rara sensibilidade, Miranda, Ollertz, Pope e Verandi forjam a 'tradição musical' do Ocidente de onde falam. A pretexto de altura, Pope trabalha com fenômenos perceptivos complexos. A pretexto de timbre, Miranda cria um sistema de síntese e pondera o destino de seu próprio ofício. Ollertz realiza impecavelmente o ideal de uma música concreta abstrata. Verandi faz teatro para o ouvido.

Vivemos em um mundo achatado por uma abolição de distâncias que não traz proximidade alguma (proximidade não é ausência de distância). Perdemos contato com as coisas e conosco. Culpamos 'a tecnologia'. Em desalento, 'deixamos falar' os objetos. Mas sua objetividade foi maculada por nossa subjetividade corrompida. A aparelhagem eletroacústica fornece ferramentas poderosas para interrogar o universo das coisas. Postulando coisas sonoras como objetos sonoros e nos permitindo jogar com eles, ela promove uma humanidade que tendemos a esquecer. O gravador, o sintetizador, o sistema de síntese e a inteligência artificial são algo poético. Eles merecem ser ouvidos.

 

 Esta versão Copyright©1999 Revista Eletrônica de Musicologia, vol. 4/Junho de 1999