Departamento de Artes da UFPR
Revista Eletrônica de Musicologia
Vol. 3/Outubro de 1998
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Versão em inglês


FLORIVALDO MENEZES (Organizador): MÚSICA ELETROACÚSTICA

CarlosPalombini

Mikropolyphonie 3.01, Melbourne: La Trobe University, 1997

Computer Music Journal 21 (4): 88--9, Cambridge: MIT Press, 1997  

 

Bons ventos sopravam em Paris --- final de guerra --- enfunando velas que levariam o intelectual francês Pierre Schaeffer da cabine de efeitos sonoros da Radiodifusão e Televisão Francesa a uma aventura pelo continente maravilhoso da percepção sonora. Sua Índia era galante: aquela linguagem universal da música de que a tradição ocidental desesperara já. Estava fadado a não achá-la. Aportou num continente novo onde tudo era incomensurável. Prestou ouvido ao pequeno: um grão, uma allure, um halo. À 'problemática musical do ocidente' contrapôs seu tédio e uma tecnologia de escuta que Ponge, o terceiro Barthes e o último Calvino postulariam para a escrita. Publicou Traité des objets musicaux em 1966, diário de bordo de uma vintena de anos de experimentação sonora. A arquitetura Gaudiesca da obra passou desentendida, mas iluminações dispersas em prosa luxuriante floresceram em solos aprazíveis: Claude Cadoz, François Delalande e Alistair Riddell são os primeiros de que me lembro. Já muito antes dos funerais de Schaeffer seu texto se embotava sob camadas sucessivas de rodapé rude, de prosa laudatória.

Para homenagear o trigésimo aniversário, Menezes requenta um prato favorito, pouco à vontade em pompas acadêmicas. Prova-se o que se queira com uma citação 'bem escolhida'. Um extrato dos primeiros escritos de Schaeffer apresenta 'significação' como associada à forma do som e incompatível com a música, que se basearia em variações de matéria. 'Significação', como Schaeffer a constrói aqui, quer dizer identificação do evento produtor do som, geralmente vinculada ao transiente de ataque, que contém em germe a forma do som. Daí que a forma, querendo dizer (por sinédoque) o ataque, deva ser eliminada para que relações de matéria (e com elas a forma musical) substituam o que de outro modo seria apenas uma sucessão de episódios literários: um trem que parte, um relógio que desperta, um realejo que toca. Menezes lê este excerto assim: (1) só a forma significa, (2) só a matéria é importante para Schaeffer, (3) a música concreta desconhece a forma e não significa. Na realidade matéria sem forma é característica de técnicas primitivas de síntese. Sendo desprovida de forma por definição, a matéria é para Schaeffer uma mera abstração, um dispositivo analítico. Mas abstrações são precisamente o que leituras como esta gostariam de nos fazer acreditar que Schaeffer fosse incapaz. E porque o conceito que Schaeffer propõe de material não é exatamente o seu, Menezes sente-se a vontade para afirmar que o pensador que gastou mais de mil páginas e o melhor de seus anos mapeando o território sonoro não faça a mínima idéia do que seja o material da música. Estes dois achados --- que a música concreta desconhece a forma e não significa, e que Schaeffer não sabe o que seja o material --- são repetidos toda a vez que o apetite crítico do autor entenda saciar-se numa nota de rodapé. Como se esperaria, a segunda metade do olhar retrospectivo de Menezes sobre a história da música eletroacústica canta as glórias de Colônia e de Milão. Tudo isso é muito simples, tudo isso é muito velho.

Música eletroacústica: histórias e estéticas abre-se e fecha-se com ensaios de Menezes. Para rechear o bolo, Menezes e a esposa, Regina Johas, traduziram dezenove textos históricos, de Russolo a um Menezes já histórico. As traduções não são confiáveis. Ear, significando o orgão da audição, se verteria 'ouvido', mas Menezes quer 'orelha'. Corde pincée se verteria 'corda pinçada', mas Menezes quer (e re-quer) 'corda pincelada'. Herbe se verteria 'grama', mas Menezes toca 'lira'. Interplanetarische Untertasse se verteria 'disco voador', mas Menezes enxerga um 'pires interplanetário'. Mode no francês é 'moda' se feminino e 'modo' se masculino: Menezes faz da 'moda' um 'modo'. A allure de Schaeffer é provavelmente intraduzível: Menezes insiste em 'andamento'. Porém é quando George Armitage Miller, que Schaeffer cita de uma edição francesa, verte-se ao português a partir do francês, que tudo pode acontecer: flock (gado ovino) vai à Europa como menu bétail (ovinos e suínos) antes de chegar à América do Sul como 'gado miúdo' ('criação miúda' passaria); herd (gado bovino) vai à França como gros bétail (bovinos e eqüinos) antes de chegar ao Brasil como 'gado grosso' (o que é que é isso?); um coupé (cupê), automóvel fechado com duas portas e dois assentos, retorna à Paris como coupé antes de chegar a São Paulo como um 'trem'; e um sedan (sedã), automóvel fechado para quatro ou mais passageiros, circula pela Cidade Luz como conduite intérieure e reaparece como um 'metrô' na Paulicéia.

O leitor é lembrado com insistência (às vezes de maneira inoportuna: veja-se a nota 5 à página 159, onde Schaeffer fala da síntese como uma operação de seu próprio solfège) de que Schaeffer é análise e Colônia é síntese. Contudo na 'Cronologia da música eletroacústica' nos deparamos com um Menezes mais eclético: para pioneiros como Reginaldo de Carvalho, Conrado Silva e Jorge Antunes, filtragem radical; para o próprio Menezes, extended analytic techniques: '1986: Colônia: Flo Menezes ingressa no Estúdio de Colônia e se propõe a desenvolver o que chamará de forma-pronúncia: a derivação da forma musical a partir da estrutura fonológica das palavras, viabilizada pelas manipulações oriundas dos meios eletroacústicos. Sua primeira composição em Colônia, Phantom-Wortquelle; Words in Transgress (1986--1987), será considerada na Alemanha como a mais radical obra realizada no Estúdio de Colônia nos últimos anos. A forma-pronúncia é vista por Pousseur, em analogia à melodia de timbres, como Klangfarbendauernproportion (proporção de durações de timbres)' (p. 257), etc...

Aquele que já se apresentou como 'O Maior Compositor das Américas' musicou também 'um dos mais significativos representantes da novíssima poesia brasileira' (p. 216), Menezes, seu irmão. O que ele acha de seu livro anterior? 'Esse livro constitui, poupando-me uma eventual pálida modéstia, uma pedra fundamental, um marco da análise da música de nosso século' (p. 12). Menezes está profundamente preocupado com a 'arraigada individualidade em meio às instituições públicas brasileiras' (p. 13), cheias de 'parasitas', de indivíduos 'via de regra, apoiados pela incompetência profissional, não raramente desprovida [sic] de uma total falta de talento' (ibid.). A comunidade eletroacústica brasileira preocupa-se também. Aproveitamos esta oportunidade para agradecer Menezes e desejar-lhe todo o sucesso em empreendimentos futuros.

O livro oferece ao estudante brasileiro, pouco familiarizado com idiomas estrangeiros, as únicas traduções disponíveis de ensaios importantes. Os comentários técnicos são invariavelmente precisos, mas auto-referência e auto-elogio desandam qualquer merengue. Não se trata absolutamente de um texto crítico. Acompanha-o um CD contendo obras históricas e --- quase que me esqueço! --- uma peça de Menezes.

Copyright©1998 Revista Eletrônicade Musicologia, vol. 3/Outubro de 1998