Departamento de Artes da UFPR
Revista Eletrônica de Musicologia
Vol. 2.1/Outubro de 1997
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A PERIGOSA QUESTÃO DA MÚSICA MODERNA NA CONTROVÉRSIA ENTRE BUSONI E PFITZNER

Vânia Schittenhelm

Artigo apresentado no TAGS Day for Music Postgraduates na Universidade de Londres, Royal Holloway, em maio de 1997, e em junho no Postgraduate Study Day da Universidade de Surrey.

O papel de Ferruccio Busoni (1866-1924) na história musical deste século não tem sido suficientemente compreendido. Ao mesmo tempo em que ele é considerado um pensador visionário, que previu o emprego de instrumentos eletrônicos, lutou pela expansão da linguagem tonal e pela inclusão de procedimentos microtonais, ele tem sido visto por muitos críticos como sendo um artista conservador, cujas obras parecem contradizer tais idéias inovadoras. Segundo eles, suas obras não realizam o potencial de mudança implícito nos seus escritos teóricos. Essa visão dicotômica de uma personalidade musical tão fascinante quanto a de Busoni só prejudica a nossa apreciação das implicações da sua produção como instrumentista, compositor e escritor musical. Entretanto, deve-se dizer que nós encontramos na vida e obra busoniana muitas divisões e contradições que, se não forem vistas num contexto maior, parecem dar apoio a tal leitura. Mesmo contemporâneos de Busoni estavam conscientes da heterogeneidade das suas idéias, e eram frequentemente confundidos por esse fato. Eles consideravam que a estética busoniana deveria ser o paradigma segundo o qual suas obras deveriam ser julgadas, e não conseguiam entender as discrepâncias que surgiam da comparação entre suas idéias e sua produção composicional. Alois Hába (1883-1972) não conseguia aceitar porque Busoni, apesar de defender o uso de microtons nos seus escritos, nunca os utilizou nas suas composições (1). Arnold Schoenberg (1874-1951) também era da mesma opinião. Ele reconhecia que muitas das idéias de Busoni sobre o futuro da música eram intimamente ligadas à sua concepção musical, e esses ideais comuns até fizeram com que ele sugerisse a Wassily Kandinsky (1866-1944) que Busoni contribuísse para um dos números da revista Der Blaue Reiter. Ele escreveu para Kandinsky, provavelmente no início de fevereiro de 1912 dizendo: "Você não gostaria também de pedir uma contribuição para Busoni? Ele tem uma ligação muito íntima conosco. Leia o número de 1o. de fevereiro da revista Pan sobre a sua Nova Estética da Música" (2). Apesar de Busoni não ter escrito para o Blaue Reiter, outros artigos publicados nesse periódico apresentam uma incrível semelhança com algumas das idéias busonianas. Um exemplo é o manifesto Die freie Musik, no qual Nikolaj Kulbin, um dos futuristas russos, exigia o emprego de procedimentos microtonais, sem ter conhecimento das idéias expressas por Busoni no seu livro Esboço para uma Nova Estética Musical (3). Mas, ao mesmo tempo, Schoenberg se preocupava com a divergência entre essas concepções e os meios 'tradicionais' empregados por Busoni nas suas composições. Numa carta datada de setembro de 1910, ele havia pedido para que Busoni lhe enviasse outras composições, e especificado o tipo de obras lhe interessavam: "Aquelas que realmente põe em prática o que você havia prometido no seu panfleto [referindo-se ao Esboço]" (4).

Mesmo estudiosos que procuram defender as obras busonianas da acusação de que elas não estão de acordo com os seus ideais estéticos tendem a cair nessa armadilha dicotômica. Eles afirmam que nós não deveríamos necessariamente estar procurando pela realização desses ideais nas obras de Busoni, mas que eles iriam finalmente ser realizados ou no trabalho de outros compositores, tão diversos quanto Edgard Varèse (1883-1965) e Kaikhosru Shapurji Sorabdji (1892-1988), ou no crescente emprego de microtonalidade e na emergência de outras formas de instrumentos no período anterior e posterior à morte de Busoni. É certo que podemos detectar a influência busoniana nesses desenvolvimentos musicais posteriores. Entretanto, essa linha de argumentação não me parece convincente, principalmente porque ela também embarca no mesmo tipo de divisão esquizofrênica das idéias de Busoni, como se ele estivesse oscilando, sem nenhuma razão aparente, entre procedimentos musicais tradicionais e as mais avançadas tendências de experimentação musical.

Mas ao invés de ser considerado como um corpo de obras incoerente, a sua produção pode ser interpretada como sendo uma resposta específica a muitas das questões artísticas da sua época. O estudo das reações de Busoni frente a essas preocupações pode revelar muito sobre as mudanças que estavam então ocorrendo no seu meio social e cultural. Ao invés de apenas medir o seu trabalho contra os seus próprios ideais estéticos, eu pretendo confrontá-los com o seu contexto maior. O significado de Busoni só pode ser percebido se for dada a devida atenção à maneira como ele se relacionava com seu contexto cultural e político. Eu não presumo que seja possível integrar todos os aspectos conflitantes da sua obra numa visão coerente e harmônica. Entretanto, parece-me que esses aspectos são sintomáticos não apenas das mudanças culturais que estavam ocorrendo nas artes entre o final do século XIX e início do século XX, mas também que eles apontam para muitas tendências que iriam finalmente se tornar parte integral da nossa música contemporânea. O modo como Busoni lidou com diferentes tendências musicais pode nos dizer muito sobre importantes aspectos do início do movimento modernista, e também sobre outras formas de manifestações artísticas que são normalmente excluídas do cânone modernista.

Um dos motivos para o papel periférico dado a Busoni em muitas histórias da música pode ser encontrado na maneira como historiadores musicais, herdeiros da ortodoxia modernista, tendiam a dar um maior valor aos estilos musicais cuja ênfase estava em linguagens musicais 'progressivas', que enfatizavam inovações técnicas e o desejo de romper com a música tradicional. Dessa forma, eles desconsideraram ou julgaram de forma inadequada outras formas de desenvolvimento musical que ainda estavam ancoradas em procedimentos composicionais estabelecidos, o que resultou em que uma considerável parte da produção musical deste século não recebeu os mesmos estudos e análises sérios que foram dados a obras baseadas em, por exemplo, procedimentos seriais. Isso produziu uma avaliação insatisfatória dos desenvolvimentos artísticos na primeira parte do séc. XX.

A divisão entre o que passava por uma arte realmente progressiva, ligada a uma atitude de vanguarda de ruptura com o passado, e outras manifestações artísticas que não se encaixavam claramente com esse ideal informou a atitude de críticos ligados a diversas áreas artísticas. No campo das artes plásticas isso pode ser visto na tendência a se atribuir um maior valor a obras mais abstratas, como, por exemplo, no caso das pinturas de um Piet Mondrian (1872-1944), em comparação com outras formas de manifestação artística que empregavam procedimentos técnicos mais tradicionais, como aqueles encontrados na obra de George Grosz (1893-1959), que usou procedimentos pictóricos convencionais a fim de salientar aspectos de crítica social, ou nas pinturas surrealistas de Salvador Dali (1904-1989), as quais empregavam uma técnica bastante conservadora.

Mas essa situação tem mudado devido à constatação de que não há uma divisão tão nítida entre as diversas correntes artísticas, e que a arte atual não pode ser compreendida se certos movimentos artísticos não forem considerados de maneira adequada. A tendência dominante atualmente é que todos eles devem ser tratados como parte dos vários produtos gerados pela cultura moderna, uma cultura que produziu muitas formas diferentes de representação e que só pode ser adequadamente entendida se a interconexão entre essas práticas for considerada.

É verdade que muitos dos desenvolvimentos em arte moderna que provocaram maior renovação crítica surgiram a partir de preocupações modernistas sobre a exploração das "condições do ... próprio meio da obra de arte, a fim de ... dar expressão à sua própria natureza", preocupações que são claramente articuladas na arte abstrata, ou, no caso da música, no emprego de procedimentos dodecafônicos (5). Entretanto, apesar dessa concepção ter influenciado muito do pensamento sobre estética neste século, a arte produzida no século XX não pode ser reduzida a apenas esses estilos, que foram certamente influentes, mas nunca representaram a visão da maioria.

Nesse cenário, começa a ficar clara a importância do estudo de Busoni, pois ele representa uma síntese de muitas das preocupações desse período. Seu trabalho pode, na verdade, ser considerado como a cristalização da tensão entre a representação do efêmero e a busca do eterno que está implícita no conceito de modernidade. Há uma tradição de se considerar os escritos seminais de Charles Baudelaire (1821-1867) como sendo a obra em que essa tensão, que é vista como uma das características da estética moderna, foi pela primeira vez expressa de uma forma clara. Jürgen Habermas, em Modernity versus Posmodernity, afirma que "O novo valor colocado no transitório, no elusivo e no efêmero, a própria celebração do dinamismo, revela um anseio por um; presente imaculado e estável" (6). Vista sob essa ótica, a obra busoniana poderia no ajudar a entender melhor a relação que existe entre essas diferentes práticas artísticas.

Essa relação se torna mais clara através da análise dos pontos principais tratados por Busoni no seu Esboço para uma Nova Estética Musical, temas que foram amplamente discutidos na polêmica causada por esse livro. O Esboço foi publicado por Carl Schmiedel em Trieste em 1907, e uma edição revista e ampliada apareceu em 1916 em Leipzig. Esse 'livrinho', como Busoni costumava chamá-lo, esteve no centro da controvérsia sobre as questões 'perigosas' levantadas pelo novo tipo de música sendo composta no início do século XX, provocando as mais diversas reações. Um dos seus principais oponentes foi Hans Pfitzner (1869-1949), que criticou a estética busoniana num artigo publicado em 1917, entitulado "O Perigo Futurista: Por Ocasião da Estética Busoniana" (Futuristengefahar: bei Gelegenheit von Busonis Ästhetik).

Apesar dessa crítica, uma leitura atenta dos dois textos revela que, na verdade, Busoni e Pfitzner compartilhavam uma base comum, suas preocupações estéticas estando firmemente ancoradas na tradição do século XIX. Esse fato nem sempre foi levado em consideração. Peter Franklin, por exemplo, num capítulo do seu livro The Idea of Music: Schoenberg and Others, entitulado "Palestrina e os Perigosos Futuristas", trata as idéias de Pfitzner e de Busoni como se elas estivessem em completa oposição (7). Entretanto, Busoni mesmo, na sua "Carta Aberta a Hans Pfitzner", havia declarado que várias das acusações levantadas contra ele por Pfitzner eram infundadas, e que ele compartilhava muitas das convicções de Pfitzner (8).

Não seria injusto afirmar que a leitura que Pfitzner fez do Esboço é simplista e que ele, em várias ocasiões, distorce completamente o sentido do texto busoniano. Pfitzner acusa Busoni de ser um dos fomentadores do movimento futurista, o que não é verdade. Busoni teve contato com muitos artistas futuristas e admirava a sua obra, mas nunca considerou que o seu livro pudesse ser lido como sendo um manifesto futurista. Pfitzner mantém que Busoni desprezava toda música que havia sido composta até então, pois ela se baseava em meios imperfeitos. Ele também enfatiza o aspecto destrutivo da estética busoniana, afirmando que Busoni acreditava que a música baseada na tradição ocidental era sem valor, e que só poderia se desenvolver plenamente numa época futura. Essas duas afirmações não podem ser substanciadas através dos escritos de Busoni. Ele sempre acreditou que toda inovação musical deveria estar firmemente ancorada no trabalho dos compositores do passado, e ele era contrário ao emprego de novos meios apenas devido ao aspecto da sua novidade. Pfitzner insiste que Busoni considerava regras artísticas como sendo arbitrárias, apenas prejudicando o desenvolvimento musical. Ele condena a visão que Busoni teria do futuro da música, segundo a qual a única possibilidade de renovação musical seria através do emprego de novas formas e de novos instrumentos. Na verdade, Busoni havia apenas criticado o uso medíocre de formas tradicionais e apontado novas possibilidades para o enriquecimento do vocabulário musical. Essa comparação geral mostra que Busoni realmente possuía motivos para considerar que a crítica de Pfitzner não estava tratando dos temas que ele havia explorado no Esboço de forma adequada.

Entretanto, esse não é o ponto principal dessa análise. Eu acredito que o que realmente interessa nessa discussão não é se a leitura que Pfitzner fez do texto busoniano era correta, mas sim como a estética busoniana serviu de pretexto para a discussão dos problemas artísticos contemporâneos, agindo como o catalista desse debate, no qual os temas discutidos são revelados nas diferentes posições estéticas envolvidas nessa polêmica. Entre esses temas está a análise de como as práticas artísticas em processo de transformação estavam alterando o conceito de música, levando a uma investigação do que se chama 'música moderna'.

De acordo com o que o título do seu artigo sugere, Pfitzner concentra-se em atacar o que ele percebia como sendo as perigosas ameaças do futurismo para o desenvolvimento musical. O termo 'futurismo' é empregado genericamente a fim de se referir a todos os procedimentos artísticos que pareciam negar os elementos da tradição musical ocidental. O conceito de futurismo, da forma empregada por Pfitzner, pode ser lido como sendo equivalente a uma concepção particular de 'modernismo' (9). Esse emprego do termo está de acordo com a prática recorrente de se usar a palavra 'modernismo' num sentido negativo, uso exemplificado por Jonathan Swift já no início do século XVIII (10). Mas era apropriado considerar Busoni como sendo um daqueles que estavam tentando destruir a herança musical ocidental, tendo visto o quanto ele valorizava esse background?

Na verdade, essa pergunta não pode ser colocada de forma tão simplificada. Nunca houve uma distinção clara entre o que é 'tradicional' e 'moderno' em arte moderna, e há uma complexa interrelação entre esses dois aspectos. Por exemplo, embora Schoenberg e seus seguidores enfatizassem a modernidade do dodecafonismo, expressa principalmente na nova maneira de organização da linguagem musical, eles nunca consideraram esse estilo como sendo uma ruptura com a tradição do passado, apenas como uma forma de se desenvolver as possibilidades implícitas na tonalidade. É verdade que o ideal modernista mostra um compromisso com a experimentação e renovação da forma artística, enfatizando a unidade e autonomia da obra de arte, mas essa busca produziu ao mesmo tempo resultados radicais e conservadores (11). Há uma tendência de se considerar essas diferentes consequências como sendo antitéticas, o que é claramente expresso nas muitas divisões entre música 'neo-clássica' e 'moderna', ou entre arte 'figurativa' e 'abstrata'. Essas divisões na verdade articulam a tensão existente entre as várias diferentes formas de se entender o que é arte moderna, e quais são os seus interesses.

Em termos genéricos, teorias de arte moderna consideram obras de arte como sendo objetos unitários e autônomos, que procuram reconciliar descontinuidades complexas e explorar as condições do seu próprio meio, expressando sua verdadeira natureza nesse processo. Obras de arte são vistas como objetos acabados e completos, e o papel do artista seria romper com a tradição, a fim de "make it new", como Ezra Pound (1885-1972) afirmara (12). Mas os múltiplos estilos artísticos que surgiram a partir dessas preocupações não podem ser reduzidos a esses atributos gerais, e foram caracterizados por uma rica diversidade. Como Raymond Williams assinala, "Determinar o processo que fixou o momento do Modernismo é uma questão; de identificar a máquina da tradição seletiva, 'modernismo' [sendo] uma versão altamente seletiva do moderno, que então se oferece para apropriar o todo da modernidade" (13).

No contexto da polêmica entre Pfitzner e Busoni, o primeiro contentou-se em ignorar as preocupações em comum que ambos tinham com a tradição porque ele queria defender a música daquilo que ele considerava ser as ameaças perigosas à essa arte, a saber, a expansão da tonalidade, a inclusão de procedimentos microtonais, e o desenvolvimento de novos instrumentos musicais, os quais, se empregados, iriam mudar a música para sempre. Busoni estava enfatizando a necessidade de se transcender a estreiteza do nosso sistema tonal, assinalando que a divisão da oitava em graus equidistantes é apenas uma convenção, que não leva em consideração o fato de que a "Natureza criou uma gradação infinita" (14). Essa crítica a "valores estéticos absolutos" também iria informar o trabalho de outros compositores contemporâneos, tais como o de Schoenberg, que também acreditava, segundo Robert Wason, que "tonalidade é simplesmente uma das possíveis formas de organização musical, [e] que as categorias de consonância e dissonância poderiam muito bem provar-se inadequadas para a compreensão da futura evolução da técnica harmônica" (15). Se Busoni empregou ou não esses procedimentos era nesse caso irrelevante, pois o fato de que os limites do sistema tonal estavam sendo questionados abriu o caminho para novas maneiras de se encarar o conceito do que era música, e como o som poderia ser empregado em novas maneiras, as quais iriam levar finalmente ao uso de sirenes na música de Varèse e aos 4'33" de John Cage (1912-1992).

Assim, Pfitzner estava provavelmente com razão quando reconheceu, e enfatizou, os perigos implícitos no livro de Busoni. A visão de música de Pfitzner também estava ligada às suas convicções políticas, pois essa música pertencia à grande tradição germânica e era usada para promovê-la. Por exemplo, durante a primeira guerra mundial, a ópera de Pfitzner, "Palestrina", foi apresentada na Suíça, num ciclo organizado pelo departamento de propaganda do Ministério de Relações Exteriores alemão (16). Essa associação de preocupações intelectuais e políticas também ocorre no trabalho de Thomas Mann (1875-1955), que, a propósito, elogiou a música de Pfitzner no seu livro Reflections of a Non Political Man. Apesar do título, esse livro foi escrito como um resultado direto do início da guerra, depois do que Mann se aliou com os patriotas conservadores. Ele acreditava que uma derrota política para a Alemanha poderia representar o final da cultura alemã, e considerava a preservação dessa cultura ser seu dever intelectual (17). A escolha da música de Pfitzner para ilustrar as suas opiniões então não causa nenhuma surpresa.

A diferença principal entre Busoni e Pfitzner é a maneira pela qual eles se relacionam com as possibilidades abertas para a música pelos novos desenvolvimentos artísticos que estavam ocorrendo. Enquanto Pfitzner olha, horrorizado, para as futuras alternativas musicais, e as encara como sendo um sinal certo de decadência, Busoni embraça a esperança oferecida por essas inovações. Mas essa aceitação não é sem seus problemas, como a sua produção como compositor bem mostra. Busoni tenta integrar o novo com o seu senso de tradição, de provir de um território clássico, um território que ainda era a base sobre a qual a música deveria se desenvolver. Nessa tentativa, ele tenta ultrapassar os limites da convenção e unificar as descontinuidades características de sua própria época. Mas essa busca por novas formas deve responder a uma necessidade intrínseca da obra artística, e não pode ser forçada sobre ela. Esse ponto de vista era comum a muitos artistas da época. Kandinsky, num texto de 1914 onde ele discutia seu desenvolvimento artístico rumo a um estilo mais abstrato, dizia que "nada é mais perigoso e pecaminoso do que procurar a sua própria forma através da força" (18).

Busoni compartilhava desse ideal e, apesar de reconhecer a importância de estilos que rompiam com a tradição de uma maneira distinta, nunca os empregou apenas pela sua característica de novidade. Essa nova situação cultural também informou a maneira como ele encarava a arte do passado, e a usava para servir aos seus próprios ideais estéticos. Um exemplo claro disso é visto no conceito busoniano de transcrição. Ele considera que o intérprete, apesar de ter o dever de respeitar a estrutura principal dessas obras, pode, ao mesmo tempo, ter que alterá-las a fim de torná-las significativas para a audiência atual. Essa é uma das principais contribuições de Busoni, a maneira como ele declara abertamente que as nossas experiências necessariamente alteram o nosso entendimento de obras passadas.

Na tentativa, nem sempre bem-sucedida, de conciliar a tradição musical com as inovações contemporâneas em sua obra teórica e composicional, Busoni percorre vários dos caminhos que estavam sendo abertos para a arte moderna no início deste século. Sua figura torna-se, então, um caso exemplar da complexidade do panorama artístico modernista, e o seu estudo pode nos ajudar a ultrapassar os clichês que geralmente estão associados a obras deste período.

Vânia Schittenhelm é mestra em teoria e análise musical pela universidade de Reading, onde atualmente realiza o seu doutorado em musicologia, financiado pela Capes. (retorna)



Notas

(1) ZELLER, Hans Rudolf. "Busoni und die musikalische Avantgarde um 1920". p. 101-4. (retorna)

(2) HAHL-KOCH, Jelena (ed.). Arnold Schoenberg, Wassily Kandinsky: Letters, Pictures and Documents. p. 45. (retorna)

(3) ZELLER, Hans Rudolf. Op. Cit. p. 99. (retorna)

(4) BUSONI, Ferruccio. Selected Letters. p. 408. (retorna)

(5) CONNOR, Steven. "Modernism and Postmodernism". p. 288. (retorna)

(6) HABERMAS, Jürgen. "Modernity versus Postmodernity". p. 5. (retorna)

(7) FRANKLIN, Peter. The Idea of Music: Schoenberg and Others. p. 117-38. (retorna)

(8) BUSONI, Ferruccio. The Essence of Music and Other Papers. p. 17-9. (retorna)

(9) FRANKLIN, Peter. Op. Cit. p. 124. (retorna)

(10) MAHAFFEY, Vicki. "Modernist Theory and Criticism". p. 512. (retorna)

(11) CONNOR, Steven. Op. Cit. p. 288. (retorna)

(12) Ibid. p. 288-91. (retorna)

(13) WILLIAMS, Raymond. "When Was Modernism?". p. 32-3. (retorna)

(14) BUSONI, Ferruccio. "Sketch of a New Esthetic of Music". p. 89. (retorna)

(15) WASON, Robert W. Viennese Harmonic Theory from Albrechtsberger to Schenker and Schoenberg. p. 135. (retorna)

(16) BUSONI, Ferruccio. Selected Letters. p. 268. (retorna)

(17) MORRIS, Walter D. "Translator's Introduction". p. viii-ix. (retorna)

(18) Citado em Harrison and Wood. p. 95. (retorna)



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