Revista eletrônica de musicologia

Volume XIII - Janeiro de 2010

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Aspectos “espectralistas” no pianismo de Almeida Prado

Didier Guigue (UFPB)*

    

Resumo: Profecia n. 1 para piano (1988), de Almeida Prado, fornece um bom exemplo de uma estrutura formal exclusivamente pensada e construída a partir do modelo espectral. Nossa análise procura mostrar como o compositor deriva e desenvolve o material da primeira parte a partir de um espectro harmônico de Si. Longe de ser suficiente para catalogar Almeida Prado como compositor “espectral”, já que ele não usa esta técnica de forma nem “científica” nem sistemática, a abordagem da questão da forma a partir da estrutura intrínseca dos sons (sobretudo os sons de piano) constitui um elemento fundamental da sua linguagem.

 

 

O espectro harmônico como agente estrutural [1]

Ao longo da sua trajetória criadora, Almeida Prado (1943–) desenvolveu um arcabouço teórico de incorporação estrutural do atonalismo com o fenômeno harmônico. Chamado de sistema organizado de ressonâncias, ele foi formalizado na sua tese de Doutorado [2] e explorado inicialmente com o ciclo de obras pianísticas Cartas Celestes , começado em 1974. Este sistema, "uma tentativa de colocar juntos as experiências atonais com o uso racional dos harmônicos" [3], visa catalogar estruturas baseadas nas séries harmônicas natural (i.e. superior) e artificial (i.e. inferior) em quatro categorias repartidas entre zonas de ressonâncias explícita (quando a estrutura se organiza com base numa série harmônica), implícita (quando uma sonoridade harmônica é sugerida por algumas notas em meio a um contexto atonal) e múltipla (quando vários acordes geram « um turbilhão de ressonâncias »), e uma zona de não-ressonância (quando se usa um material não gerador de espectro harmônico) [4]. Cada uma dessas modalidades tem personalidade sonora própria, e é, portanto, passível de assumir determinadas funções narrativas ou expressivas dentro de possíveis estruturas composicionais.

A música espectral, desenvolvida notavelmente pelo compositor Tristan Murail, colega de Almeida Prado na turma de Olivier Messiaen em Paris nos anos 1970, se particulariza pelo fato que procura encontrar nas propriedades acústicas do som sua razão dinâmica, e, daí, a estrutura temporal que poderá revestir a obra. O modo mais simples de conhecer essas propriedades é de obter, por meio de equipamento específico (normalmente via computador) uma lista do conjunto das freqüências em presença a cada momento no som, com suas intensidades respectivas. Este censo dá o que é chamado de « espectro » do som. Como os espectros naturais nunca são fenômenos totalmente estáticos, pois até o espectro instrumental o mais simples se modifica no tempo, a composição com os espectros implica em levar em conta essas transformações, as quais agem em retorno sobre o ritmo, a pulsação da música e os processos formais. De fato, a harmonia, a melodia, o timbre, a intensidade e a forma deixam de existir como entidades separadas, organizadas segundo sistemas distintos e independentes. Eles são considerados como partes do fenômeno sonoro global [5].

Almeida Prado definitivamente não é um compositor espectral stricto sensu , pois não se preocupa em analisar objetivamente configurações espectrais para daí deduzir estruturas temporais. Porém, ele demostra interesse em buscar estratégias de articulação da forma a partir de processos que se baseiam na manipulação do som, com ênfase no som pianístico — pois este instrumento constitui o veículo privilegiado da sua expressão e estética —, e na organização da sua evolução no tempo. Iremos evidenciar essa assertiva por meio da análise da primeira das Três profecias em forma de estudo , de 1988.

 

A Profecia n.1, um « estudo de ressonâncias »

Por ter nascida de um elan profundamente religioso, pois seu sujeito é uma das profecias de Zacarias, textualmente reproduzida no coração da obra (c. 86), como que para guiar o intérprete, a Profecia n.1 é também um rigoroso “ estudo de ressonâncias ”, conforme anuncia o sub-título, que « tem como objetivo trabalhar as ressonâncias e o uso do pedal, criando côres e figurações novas atravez dos harmônicos », segundo explica o próprio compositor em anotação na última folha da partitura [6]. Ele ainda completa que a peça é articulada em quatro seções, onde cada uma desenvolve uma estrutura harmônica específica, respectivamente baseada nas fundamentais Si, Fá, Ré b e Sol. A arquitetura da primeira seção (c. 1-20) é ilustrativa da intenção formal do compositor. Ela é construída a partir de quatro formantes [7] de um espectro de Si 0 com 60 harmônicos [Fig. 1].

 

[ FIG. 1: Os 32 primeiros harmônicos de Si, aproximados ao semi-tom (na obra, Almeida Prado trabalha com 60).]

 

Cada formante, que rotularemos doravante a , b , c , e d , age como um filtro deste espectro. A fig. 2, adiante, mostra cada um dos formantes da maneira como estão apresentados na partitura [8], e também em notação harmonicamente ordenada, com indicação do número do harmônico. Na obra, a seqüência dos formantes é a seguinte:

a – b – c – d0 – c – d1 – c –d2 – c – d2 – c – d2 – b

onde os índices numéricos indicam variações do formante d .

 

[FIG. 2: os principais formantes do espectro de Si usados na primeira seção de Profecia n. 1. ]

 

[Escute esses formantes (primeiros compassos da obra)]

 

A descrição sucinta de cada um deles é necessária para se entender a lógica da sua articulação no tempo.

O formante a (c. 1-3) abre o espaço sonoro da peça acionando um leque de harmônicos muito elevados (do 14°, Lá4, ao 30°, Lá#5), numa dinâmica ff . O brilho deste registro é reforçado pela duplicação desses harmônicos uma oitava acima (harmônicos 28 a 60) e também uma oitava abaixo [9]. Tendo a particularidade de nunca ser reprisado na peça, e devido a suas características sonoras — que exploram uma região do espectro à qual não se voltará —, pode-se sugerir que a função para-musical de a seja de prenunciar a profecia , num gesto simultaneamente pianístico e religioso que estimula a comparação com o Messiaen dos Vingt Regards sur l'Enfant Jesus [10].

Uma das singularidades de a reside na ausência do Si. Esta omissão é compensada com a introdução do formante b (c. 4-5), exclusivamente alimentado pela fundamental Si0 espelhada em 3 oitavas (harmônicos 1, 2, 4 e 8). Assim b se coloca em oposição estrutural diametral a a , tanto no plano das alturas, da estrutura intervalar e da região do espectro, quanto da intensidade, ppp . Instala-se então nesses cinco primeiros compassos uma sonoridade que tem a propriedade e a função de delimitar desde o início o espaço harmônico completo desta seção — da fundamental até os harmônicos mais elevados que vamos encontrar pela frente —, enquanto que considerada diacronicamente, isto é, na sua dinâmica temporal, instaura-se um processo dialógico baseado no contraste adjacente de sonoridades, através da alternância de formantes situados respectivamente na região aguda (emitidos em forte intensidade) e grave (emitidos em baixa intensidade) do espectro de Si0 [11].

Optamos por ilustrar este contraste de duas formas [figs. 3 e 4]. Na fig. 3, a cada formante, disposto no eixo horizontal do gráfico, é atribuído, no eixo vertical, um peso correspondendo a média dos seus componentes harmônicos escritos; em outros termos, o gráfico representa a média da distância das alturas de cada formante em relação à fundamental Si0. Na fig. 4, analisamos, por meio de um aplicativo específico, uma gravação da obra [12]. Aí o eixo horizontal representa as freqüências em Herz e o eixo vertical a intensidade relativa de cada uma, em Decibeis. Ambas as figuras são representação do mesmo fenômeno, sendo que a primeira leva em conta, exclusivamente, a intenção composicional tal como formalizada na partitura, e a segunda, uma das interpretações real desta intenção, com determinado instrumento e em determinadas condições acústicas de gravação [13]. Porém, em ambas as figuras, a diferença estrutural entre a e b salta à vista: na fig. 3, a e b correspondem aos valores respectivamente mais elevado e mais baixo do conjunto dos formantes, a mesma diferença extrema podendo ser lida também na fig. 4.

 

[FIG. 3: Uma representação dos contrastes adjacentes de sonoridades entre os sucessivos formantes (eixo horizontal), a partir do cálculo da média da distância dos harmônicos em relação à fundamental (eixo vertical).]

 

[FIG. 4: Sonograma da estrutura dos principais formantes da peça ( a – b – c – d ), realizado a partir de uma gravação da obra. O eixo horizontal representa as freqüências (de 40 Hz a 5 KHz), e o eixo vertical, a amplitude absoluta (de – 8 a - 5 dB).]

 

[Escute novamente os quatro formantes no arquivo sonoro].

 

O importante é que este início anuncia o restante da dinâmica formal da seção. Entre os c. 6 e 15, que representam o centro da seção, Almeida Prado reproduz a alternância de contrastes baseada na oposição entre objetos suavemente consonantes, pois constituídos de harmônicos próximos da fundamental e tocados piano (formante c ), e objetos dissonantes, já que contêm harmônicos afastados e que são tocados forte (formante d e suas variações). As figs. 3 e 4 representam satisfatoriamente esta lógica formal: após o contraste inicial provocado pela seqüência a e b , assistimos na fig. 3 a uma oscilação regular entre uns formantes harmônicos e outros mais inarmônicos. Isto é representado na fig. 4 pelos sonogramas c e d que devemos imaginar alternando cinco vezes. Esta oscilação estrutural simula a típica propagação vibratória do som: o paradigma mesmo do som portador de forma musical…

Observamos que os formantes b e c se completam harmoniosamente — expressão mais do que judiciosa no caso — pois juntos formam o acorde perfeito maior com sétima menor. Por outro lado, a timbração dominante do formante d é provocada essencialmente pela sonoridade do pedal Fá#4 ff . Isto é bem mais evidente na audição da peça (e por conseguinte no sonograma) do que na leitura da partitura, onde todas as notas parecem ter o mesmo peso sonoro. Na fig. 4, em d , é este Fá#4 (370 Hz) que é mesmo responsável pelo pique característico do perfil de amplitude. Este pedal é completado de ressonâncias provocadas por uma seqüência de harmônicos en pianissimo , ainda bem visualisadas na mesma figura, freqüências situadas aproximadamente entre 630 e 4000 Hz. Esta seqüência varia levemente a cada repetição do formante (a fig. 20 mostra as principais variações), mas a seqüência de harmônicos não passa de uma permutação da seqüência do formante a , como pode ser observado na mesma fig. 20 ao comparar as notas de a e de d .

As variações dos formantes, repetições do original com acréscimo ou supressão de notas, não chegam a alterar significativamente a sua sonoridade. Trata-se mais de uma estratégia de prolongação no tempo de um mesmo som. Almeida Prado encerra esta primeira seção por meio de uma grande escala cromática triplicada, ascendente e crescendo (c. 17-20, não representada nas figuras) que, a maneira de um ruído branco, aniquila deliberadamente o ambiente acústico vigente.

As demais seções da peça, cada uma baseada, como dissemos, no espectro harmônico de uma fundamental diferente, retomam o mesmo princípio de articulação a partir de 4 formantes a b c d cujo conteúdo harmônico mantem aquelas mesmas características. A diferença reside na progressiva complexificação deste conteúdo, e na “desordem” crescente da seqüência de apresentação dos formantes. Tomando como exemplo o formante b , eis a progressão da sua configuração nas quatro seções (fundamentais Si, Fá, Ré b e Sol, sucessivamente) [fig. 5]. Constatamos o acréscimo progressivo de mais harmônicos.

[FIG. 5: A evolução do formante b em quatro contextos harmônicos sucessivos.]

 

Uma composição baseada no espectro harmônico

Profecia n. 1 é um excelente exemplo de uma estrutura exclusivamente pensada e construída a partir do modelo espectral. Como já frisamos, isto não é suficiente para catalogar Almeida Prado como “espectralista”, já que ele não usa esta técnica de forma nem dogmática, nem científica, nem sistemática. Porém, a abordagem da questão da forma a partir da estrutura intrínseca dos sons (sobretudo os sons de piano) constitui um elemento fundamental da sua linguagem, e da sua linguagem pianística em particular, explorado de forma particularmente refinada nesta obra.

 

Referências

ANDERSON, Julian. Dans le contexte . Entretemps n. 8, 1989.

ASSIS, Ana Cláudia. O timbre em ‘Ilhas' e ‘Savanas' de Almeida Prado . Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UNIRIO, 1997.

GUBERNIKOFF, Carole. A Missa de São Nicolau , de Almeida Prado, na confluência das opções estéticas dos anos 80. Revista Música v. 9/10, 1998-1999.

GUIGUE, Didier. Sobre a estética sonora de Messiaen . Opus , Ano VIII n° 7, 2000.

GUIGUE, Didier, e PINHEIRO, Fabióla. Estratégias de articulação formal nos Momentos de Almeida Prado. Debates , n. 6, 2002.

MURAIL, Tristan. Questions de cible . Entretemps n. 8, 1989.

MURAIL, Tristan. A revolução dos sons complexos . Tradução de José Augusto Mannis. Cadernos de Estudos: Análise Musical no. 5, 1992.

PRADO, J. A . R. de Almeida. Cartas Celestes – Uma Uranografia Sonora Geradora de Novos Processos Composicionais. Tese de Doutorado. Campinas: UNICAMP, 1985.

PRADO, J. A . R. de Almeida. Profecia n°1 . Partitura manuscrita, 1988.

ZUBEN, Paulo Ferraz Von. Ouvir o Som . São Paulo: Ateliê, 2005.


[1] Este artigo, inédito, utiliza material de pesquisa desenvolvido durante projeto financiado pelo CNPq entre 2000 e 2002. A pesquisa e a redação do relatório, de onde o presente texto se origina, contou com a colaboração de Fabióla Pinheiro, bolsista PIBIC. Outro material relacionado foi publicado por: GUIGUE, Didier; PINHEIRO, Fabióla. Estratégias de articulação formal nos Momentos de Almeida Prado . Debates , n. 6, 2002.

[2] PRADO, J. A . R. de Almeida. Cartas Celestes – Uma Uranografia Sonora Geradora de Novos Processos Composicionais. Tese de Doutorado. Campinas: UNICAMP, 1985. Bem sintetizado em : ASSIS, Ana Cláudia. O timbre em ‘Ilhas' e ‘Savanas' de Almeida Prado. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UNIRIO, 1997, e em GUBERNIKOFF, Carole. A Missa de São Nicolau , de Almeida Prado, na confluência das opções estéticas dos anos 80. Revista Música v. 9/10, 1998-1999.

[3] PRADO, op. cit., apud ASSIS, op. cit.

[4] Cf. definições e exemplos concretos em ASSIS, op. cit. , p. 3 et sq.

[5] ANDERSON, Julian. Dans le contexte . Entretemps n. 8, 1989. MURAIL, Tristan. Questions de cible . Entretemps n. 8, 1989. MURAIL, Tristan. A revolução dos sons complexos . Tradução de José Augusto Mannis. Cadernos de Estudos: Análise Musical no. 5, 1992. ZUBEN, Paulo Ferraz Von. Ouvir o Som . São Paulo: Ateliê, 2005.

[6] PRADO, J. A . R. de Almeida. Profecia n°1 . Partitura manuscrita e anotada pelo compositor , 1988 (cópia gentilmente cedida por Ana Cláudia de Assis).

[7] Em acústica, os formantes são grupos de harmônicos que se sobressaem no plano da intensidade relativa. São eles, por exemplo, os responsáveis pelo timbre de determinada nota de determinado instrumento.

[8] Na partitura a e b são um pouco mais compridos do que mostramos, pois o compositor repete células, mais a coleção de alturas resta a mesma.

[9] Nesta transposição no entanto, algumas notas, por força da oitaviação, não fazem mais parte da série harmônica natural (por isto não representamos esta oitava inferior na figura).

[10] GUIGUE, Didier. Sobre a estética sonora de Messiaen . Opus , Ano VIII n° 7, 2000.

[11] Considerados juntamente, a e b podem ser analisados, também, como um acorde de ressonância invertida , onde a ressonância (em intensidade pp ) é constituída das fundamentais de b , enquanto o principal do som ( ff ) é formado pelos harmônicos de a .

[12] Gravação realizada por Ana Cláudia de Assis e disponível no CD: O som de Almeida Prado . Série Interpretação e música brasileira. Rio de Janeiro: UNIRIO, 1999. O programa utilizado foi SonicWorx (descontinuado). A análise se faz em tempo real, a medida que o trecho é tocado. Fixamos um instantâneo ( snapshot ) da representação visual para criar os gráficos da figura.

[13] Esta particularização é relevante. No seu comentário da obra, com efeito, o compositor alerta que « o ouvido deverá estar atento às possibilidades acústicas do piano em que for realizada a obra ». PRADO, 1988, op. cit. .

 

* Didier Guigue (dguigue@cchla.ufpb.br), nascido na França, reside em João Pessoa desde 1982. Professor Associado da Universidade Federal da Paraíba, coordena atualmente o Programa de Pós-Graduação em Música e realiza pesquisas na interseção entre musicologia sistemática e computação, no âmbito do Grupo de Pesquisa que dirige, o Mus 3 (www.cchla.ufpb.br/mus3).