Revista eletrônica de musicologia

Volume XIII - Janeiro de 2010

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O papel do piano para a vida musical e cultural do Rio de Janeiro desde o final do século XIX

Luiz Paulo Sampaio (UNIRIO)

    

Resumo: Este trabalho relata a importância do piano dentro do panorama sócio-cultural brasileiro. Desde a sua chegada, há quase dois séculos, o piano sempre foi acolhido com entusiasmo e, a partir de meados do século XIX, ele começou a exercer um papel cada vez mais importante em todas as atividades musicais no Rio de Janeiro e em São Paulo, tanto nas salas de concerto, como nos salões e nos teatros de variedades e, até mesmo, nos cafés. Tocava-se ao piano um repertório vasto e muito eclético, abrangendo todo tipo de música, desde as grandes obras de concerto até peças populares e de salão.  Esta extraordinária atividade pianística gerou uma grande quantidade de composições para o instrumento em todos os estilos e gêneros musicais. Praticamente todos os principais compositores brasileiros, a partir da segunda metade do século XIX, dedicaram ao piano uma parte ponderável de sua produção. Portanto é possível afirmar que o piano possui um papel fundamental no processo histórico de  desenvolvimento da vida musical e da formação de uma identidade musical brasileira.

 

Palavras-chave: piano brasileiro, vida musical, tango brasileiro, nacionalismo 

 

O piano chegou ao Rio há quase dois séculos e foi imediatamente acolhido com entusiasmo pelos cariocas. Segundo Mário de Andrade, pioneiro da musicologia brasileira, os primeiros pianos foram trazidos ao Brasil, por D. João VI, no decorrer da permanência da corte portuguesa no Rio de Janeiro, durante o primeiro quartel do século XIX. Andrade, citando um cronista daquela época, observa que, já em 1856, o Rio se tornara “a cidade dos pianos”, sendo que, perto do final do século, diversos textos registravam ser possível localizar pianos até mesmo em fazendas do interior do país, a centenas de quilômetros das grandes cidades.

Com efeito, a partir de meados do século o piano começou a exercer um papel cada vez mais importante em todas as atividades musicais no Rio e em São Paulo, tanto nas salas de concerto, como nos salões e nos teatros de variedades e, até mesmo, em cafés e casas de chá. Mais tarde, já no início do século XX, o piano tornou-se um integrante indispensável dos pequenos conjuntos instrumentais que se apresentavam nos foyers dos cinemas antes das sessões.

Tocava-se ao piano um repertório, vasto e muito eclético, abrangendo todo tipo de música, desde as grandes obras de concerto, até peças populares e de salão, assim como a música para canto e dança incluindo também as transcrições de ópera e de obras orquestrais.  

Esta extraordinária atividade pianística gerou naturalmente uma grande quantidade de composições para o instrumento em todos os estilos e gêneros musicais. Praticamente todos os principais compositores brasileiros a partir da segunda metade do século XIX  dedicaram ao piano uma parte ponderável de sua produção. O mesmo pode ser dito em relação à produção de compositores significativos da música popular, fato este que se mantém até o presente.

Os primeiros compositores de obras para piano no Brasil foram, respectivamente, um austríaco e um brasileiro: Sigismund Neukomm (1778-1858), discípulo de Joseph Haydn e bom pianista que viveu no Rio entre 1816 e 1821, autor de pelo menos duas obras pianísticas baseadas em música brasileira: uma fantasia para piano e flauta inspirada em uma “modinha”, gênero de canção muito popular na época, e um capricho para piano solo derivado de um lundu : gênero musical de origem africana, surgido no final do século XVIII, que se desenvolveu em forma de canção popular e também como dança, tornando-se muito divulgado durante o século XIX, tanto no Brasil quanto em Portugal. O segundo compositor era o brasileiro José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), o Padre José Maurício, contemporâneo de Neukomm e excelente organista, autor de um Método de Piano (1821) considerado como o mais importante compositor brasileiro da  época. 

Porém, foi somente depois de 1850 que o piano assumiu um papel decisivo na vida musical de duas cidades de grande importância para a cultura brasileira: Rio de Janeiro e São Paulo. A chegada ao Rio, em 1855, de Sigismond Thalberg, o célebre pianista e grande rival de Liszt, marca um momento significativo na história do piano no Brasil: foi o primeiro contato do público do Rio com um grande pianista de renome internacional que, durante sua permanência de seis meses deu inúmeros concertos nos dois maiores teatros da cidade tendo se apresentado também em vários salões, deixando alguns discípulos e uma impressão decisiva junto aos círculos musicais e culturais do Brasil. Um segundo evento notável foi a permanência no Rio, por alguns meses em 1869, do pianista norte-americano Louis Moreau Gottschalk (1829-69). Dotado de uma personalidade exuberante, Gottschalk, que morreu aqui, vítima da febre amarela, era um verdadeiro showman , que logo se tornou muito popular no Rio e em São Paulo. Chegou a reunir mais de seiscentos e cinqüenta músicos em um concerto em que dirigiu ao piano sua Grande Fantasia triunfal sobre o hino brasileiro , peça que, em sua versão para piano solo, com o título de Variações sobre o Hino Nacional Brasileiro , foi celebrizada, já no século XX, pela grande pianista Guiomar Novais. Gottschalk foi um dos primeiros compositores a se interessar pela música popular afro-americana e, com toda certeza, deve ter influenciado a jovem geração de compositores brasileiros que então surgia, ao tocar em seus concertos composições características tais como sua fantasia para piano intitulada Dança de negos , além de outras peças como Ojos criollos e Lembranças de Cuba.

É interessante observar que mesmo que o Conservatório de Música (atual Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro), a primeira instituição oficial do gênero no Brasil, existisse desde 1841, foi somente em 1871, dois anos após a morte de Gottschalk que a cadeira de piano foi criada, o que representa uma clara indicação da crescente importância atribuída ao ensino do instrumento.

Outro fator essencial para a difusão da música para piano seria a consolidação da impressão de música no Brasil no decorrer do século XIX. Durante todo o período colonial a coroa portuguesa proibiu o estabelecimento de tipografias no Brasil. Foi somente em 1808 que D. João VI fundou a Imprensa Régia, abrindo assim o caminho para que esta atividade pudesse ser exercida no país. Segundo a Enciclopédia de Música Brasileira (1998), o que é considerado como o primeiro registro de impressão de música no Rio data de 1824, portanto dois anos após a Independência, na forma de um anúncio publicado em um jornal, oferecendo o “Hino Imperial e Constitucional de Sua Majestade Imperial para piano e canto, recentemente impresso por MM John Ferguson & Charles Crokaat”, de fato uma composição feita pelo próprio Dom Pedro I. Ao longo dos anos seguintes, um bom número de casas dedicadas à impressão musical foram fundadas no Rio, sendo a mais importante delas a de Pierre Laforge, um músico francês que se estabeleceu no centro da cidade em 1834, publicando com regularidade pequenas peças de compositores locais assim como árias de óperas e canções. A partir de 1850 os sucessores desta empresa começaram a publicar também coleções de peças ligeiras para canto e piano e para piano solo com títulos sugestivos tais como “Delícias do jovem pianista”, “Progressão da jovem pianista”, “Buquê para os iniciantes” etc... Como a maioria destas casas impressoras também comercializava pianos e outros instrumentos, as duas atividades contribuíram de forma combinada para o rápido crescimento do mercado musical. Todavia, as casas editoras mais bem consolidadas datam do final da década de 1870, quando, finalmente a impressão de música tornou-se uma atividade industrial bem organizada, voltando-se cada vez mais para a publicação de música brasileira, sobretudo aquela para a dança e de caráter popular.  

A partir desta época, a despeito da grande influência do romantismo musical europeu e das danças importadas em grande parte também da Europa, é possível detectar o início de um processo de mistura dessas músicas com gêneros musicais já consolidados no Brasil, o que acabaria por produzir, no decorrer dos últimos anos do século, uma identidade musical nitidamente brasileira. Entretanto pode-se constatar que este processo começa antes pela música de dança e do teatro de variedades do que pela música erudita. Como conseqüência da combinação e transformação de características rítmicas e de andamento da polca e da habanera , com aquelas do lundu e da modinha , surgiram novos tipos como o “ maxixe ”, – geralmente considerado como a primeira dança genuinamente brasileira, oriunda dos cabarés do bairro da Lapa, reduto da boemia carioca, em torno de 1875 – e o tango brasileiro, que passou por um desenvolvimento diferente daquele do tango argentino. Foi somente mais tarde, durante os últimos anos do século, que os compositores com formação acadêmica passaram a utilizar em suas obras temas e ritmos da música popular.         

Portanto, a primeira geração de compositores com um estilo claramente nacional foi constituída por autores de música “ligeira”, de dança e de divertimento, destacando-se três personagens importantes que foram Joaquim Antonio Callado Jr. (1848-1880), Francisca Gonzaga (1847-1935) e Ernesto Nazareth (1863-1934).

Joaquim Callado, filho de um professor de música de mesmo nome que também liderava um conjunto musical, recebeu uma educação musical algo limitada a qual, entretanto, abrangia piano, flauta, composição e também a direção de conjuntos. Considerado um verdadeiro menino prodígio, já tocava flauta (seu instrumento predileto) aos 8 anos de idade em pequenas orquestras e em salões do Rio, tornando-se compositor de pequenas peças de salão antes de completar 15 anos. Em 1871, com 23 anos, tornou-se professor de flauta do Conservatório, sendo reconhecido como o melhor flautista do país. Infelizmente, em razão de sua morte precoce, os dados relativos à sua biografia e atividade musical permanecem incompletos. Porém, seu conjunto instrumental, conhecido como “ Choro carioca ” ou “ Choro do Callado ” tornou-se emblemático de um estilo musical sofisticado, estilo este cultivado no Rio, apaixonadamente e sem solução de continuidade, desde aquela época até nossos dias: o Choro. Como veremos logo a seguir, a palavra  “ choro ” tornou-se um termo polissêmico que designa não apenas uma maneira de fazer música, como também um grupo característico de instrumentistas, ou ainda, um gênero musical cuja origem permanece algo enigmática até hoje.

A segunda personagem, Francisca Gonzaga, que ficou mais conhecida pelo apelido de, “Chiquinha” Gonzaga, era filha bastarda de um militar de alta patente. Dotada de grande talento musical, estudou piano e, com onze anos de idade, compôs sua primeira música, uma pequena canção de Natal. Como era comum na época casou-se com a idade de 13 anos, mas, possuindo uma personalidade marcante e muito independente, abandonou seu marido antes de completar 21 anos, o que provocou forte escândalo. Esta situação levou a seu rompimento com a família, fato que a obrigou, como excelente pianista que era, a dar aulas de piano para garantir seu sustento, tornando-a pouco a pouco mais conhecida no meio musical carioca. Mais tarde, graças à sua amizade com Callado, começou a tocar piano com o conjunto dele nos salões e clubes locais. Em 1877, já aos 30 anos de idade, obteve seu primeiro sucesso com uma polca intitulada “Atraente”. No início da década de 1880 ela resolveu começar a compor música para o teatro de variedades, atividade até então interditada às mulheres. Depois de enfrentar certa resistência, conseguiu compor uma opereta que subiu à cena no Theatro Imperial, em 1885. Uma vez superada esta etapa, tornou-se a compositora mais importante para o teatro de seu tempo, escrevendo música para toda sorte de espetáculos: music-hall, zarzuelas, comédias, burlescas, etc... Todavia, a maior parte de sua obra é dedicada ao piano, instrumento para o qual deixou perto de 280 peças, seja para piano solo, seja para canto e piano abrangendo diferentes gêneros musicais, desde os tradicionais, mas sempre com um sabor bem brasileiro, tais como gavotas, mazurcas, barcarolas, valsas, noturnos, polcas, fados, modinhas, além de outros desenvolvidos na América Latina, como o tango brasileiro, a habanera, o maxixe, o samba, a marcha carnavalesca, todos eles gêneros novos, sendo que muitos foram consolidados graças à sua atividade . 

Mulher independente, dotada de uma personalidade enérgica, Chiquinha Gonzaga - feminista pioneira, abolicionista dedicada e republicana convicta, participou ativamente da fundação da SBAT a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais - exercendo um papel decisivo para a renovação da música e da cultura genuinamente brasileiras.     

Já nosso terceiro personagem tinha um caráter bem diferente sendo, contudo, um musicista de excepcional qualidade que exerceu uma influência musical ainda mais profunda que aquela de sua contemporânea. Ernesto Nazareth, filho de um funcionário da alfândega, nasceu em um meio pequeno burguês. Recebeu suas primeiras lições de piano de sua mãe pianista, que morreu, entretanto, quando ele tinha 10 anos de idade. A despeito da oposição de seu pai,continuou a estudar o instrumento, recebendo de maneira intermitente a orientação de um modesto professor de piano. Na realidade, sua formação pianística foi, sobretudo, autodidata, o que lhe permitiu ser muito original em sua abordagem ao instrumento o que, entretanto, não o impediu de tornar-se um excelente pianista.

Seu primeiro recital ocorreu em 1880 quando tinha quase 17 anos, no Clube Mozart no Rio. O grande sucesso desta primeira apresentação pública alimentou o sonho do jovem Nazareth de ir estudar na Europa a fim de tornar-se um concertista virtuose. Sonho que não resistiu à realidade da falta de recursos de sua família para financiar tal empreitada. Como ele era um grande admirador da música européia de concerto tendo tomado Chopin como modelo ideal durante toda a sua vida, sentiu-se inferiorizado perante seus contemporâneos, músicos que haviam conseguido se aperfeiçoar nos centros europeus. Como explica Marcelo Verzoni (2000:67) esta intimidade com a música erudita produziu em Nazareth um estilo híbrido bem próximo da “música de concerto” que tanto amava. Esta é a razão pela qual encontramos, hoje em dia, muitas de suas polcas, valsas e tangos brasileiros integrando os repertórios de músicos com formação acadêmica. Entretanto, ele enfrentou durante toda sua existência uma situação bem diferente. Mesmo que fosse considerado um excelente pianista e um compositor de grande sucesso popular, admirado por importantes artistas seus contemporâneos como os compositores Alberto Nepomuceno, Darius Milhaud e Villa-Lobos (que dedicou a Nazareth a primeira peça de sua monumental série de Choros) e também por pianistas de carreira internacional como Artur Rubinstein e Miecyslaw Horzowski, entre outros, sua obra não era considerada digna de fazer parte do currículo das escolas de música. Em 1922, algumas pessoas do meio acadêmico tiveram uma reação violenta quando o pianista e compositor Luciano Gallet, então diretor do Instituto Nacional de Música (atual Escola de Música da UFRJ), organizou uma apresentação de obras curtas,  escritas por 30 compositores brasileiros e dedicou a segunda parte da mesma  a obras de Nazareth, que tocou, ele mesmo, três de seus tangos mais célebres. Este preconceito permaneceu por vários anos após a morte do compositor, até que, finalmente, em fins da década de 1960, começou a desaparecer.

Como escreveu Verzoni em sua tese de doutorado (UNIRIO / 2000:77), o catálogo publicado pela Biblioteca Nacional por ocasião da celebração do Centenário de Nazareth, em 1963, mostra que ele deixou uma admirável obra para piano, constituída por mais de 200 composições, em que quase a metade está representada pelos tangos brasileiros, gênero que praticamente criou e que, certamente consolidou. Quanto às valsas, onde a influência chopiniana é mais evidente, elas ocupam a segunda posição com 41 títulos, enquanto que o terceiro lugar da lista pertence às 28 polcas. Além disto, encontramos marchas, sambas, foxtrotes, canções, quadrilhas, choros e outros gêneros em voga na época.

Neste ponto é conveniente fazer uma pequena digressão para falar do choro, expressão surgida no Rio durante a década de 1880, para designar os pequenos grupos de músicos amadores, compostos geralmente por modestos funcionários dos correios e das estradas de ferro. Como a palavra deriva do verbo chorar, alguns musicólogos acreditam que ela se origina do caráter melancólico e até mesmo lamentoso da música produzida por tais grupos. Os instrumentos utilizados pelos conjuntos originais eram  os violões, as flautas e o cavaquinho (o pequeno bandolim de quatro cordas, de origem portuguesa que, na época, era chamado originalmente de machete, nome que Machado de Assis usou como título em um de seus contos em que menciona o instrumento), sendo que a obra de Joaquim Callado está intimamente associada à origem destes conjuntos. Pouco a pouco, no decorrer das décadas seguintes, outros instrumentos foram acrescidos à formação inicial que passou a contar, por exemplo, com clarinetas, trompetes, trombones, saxofones, inclusive também com o piano para as apresentações em salões e nos clubes musicais. O repertório, executado em um estilo que requer muita improvisação, consistia de polcas, valsas e outras músicas importadas, que, graças ao caráter improvisado das execuções, acabaram por adquirir uma feição própria, bem brasileira, engendrando gêneros locais que, no início do século XX, passaram a receber o nome genérico de “Choro”. Tal designação tornou-se tão popular que, no decorrer da década de 1920, até mesmo os tangos de Nazareth e as polcas de Chiquinha Gonzaga, passaram a ser classificadas como choros pelas editoras de música. Entretanto, como sugere Verzoni (2000:126), esse fato originou-se mais por táticas comerciais dos editores, visando a incrementar a venda de partituras e não serve como explicação convincente, do ponto de vista musicológico, quanto a eventuais transformações estilísticas importantes sofridas pela música. Em todo caso, a atitude das editoras musicais demonstra que existia um mercado significativo para partituras de piano. Isto indica claramente a popularidade do instrumento à época, quando era grande o número de pianistas amadores, situação que foi muito bem caracterizada por Mario de Andrade quando empregou o neologismo  “pianolatria” para definir a cultura musical de então no Brasil, ressaltando assim a predominância do interesse pelo piano.

O mesmo texto de Verzoni, citado acima (p.128), fornece também a definição escrita por Villa-Lobos na primeira página do manuscrito de sua obra “ Choros nº 9 para orquestra”, de 1929, cujo original se encontra no Museu Villa-Lobos no Rio de Janeiro:

“CHÔROS – expressão popular que define as tocatas típicas de pequenos conjuntos de cantores rurais, solistas ou de instrumentos, executadas, geralmente ao ar livre. Foi o título encontrado, para denominar uma nova forma de composição musical, em que se acham sintetizadas várias modalidades da música indígena brasileira primitiva, civilizada ou popular, tendo como principais elementos o ritmo e qualquer melodia típica popularizada, que aparece de quando, em quando, incidentalmente. Os processos harmônicos e contrapontísticos são quasi uma estilização do próprio original (...) (H. Villa-Lobos, Rio 1929)”. 

Evidentemente, Villa-Lobos faz aqui referência à monumental série de 14 obras escritas para diferentes combinações instrumentais, na qual ele criou uma forma sui generis de choro: uma forma única e de caráter muito pessoal. Contudo, do ponto de vista da musicologia, o choro é um gênero de música urbana, com uma estrutura contrapontística bem sofisticada, executado com muita improvisação, nascido no  Rio e ainda pleno de vitalidade nos dias que correm.

Voltando ao piano, objeto primeiro desta comunicação, constatamos que a década de 1860 marca também o nascimento de outros dois compositores decisivos para  a fundação da escola nacionalista no âmbito da músicas de concerto: Alberto Nepomuceno (1864-1920) e Alexandre Levy (1864- 1892). Usando certos aspectos rítmicos e melódicos da música popular de seu tempo, bem como citações de temas e ritmos de canções folclóricas, eles nos legaram um repertório sinfônico, camerístico e pianístico com um certo caráter nacional, ao lado de obras concebidas dentro dos moldes europeus. Levy, bom pianista e um prodigioso talento juvenil deixou, em seu curto tempo de vida (de vez que morreu antes de completar 28 anos) uma obra bastante prolífica e diversificada na qual se encontram várias peças para  piano, sendo uma das mais célebres o “Tango Brasileiro” de 1890.

Quanto a Nepomuceno, este é considerado um dos nomes mais importantes da vida musical de sua época. Pianista de formação, tornou-se compositor, regente e organista, tendo estudado na Europa durante 7 anos, primeiro na Itália e depois na Alemanha e na França. Ao retornar ao Brasil tornou-se um importante e apaixonado defensor da música nacional, tomando posição a favor de uma escola musical essencialmente brasileira. Boa parte de sua obra é dedicada ao piano, encontrando-se, nela, juntamente com peças ligadas à tradição romântica européia, como noturnos, mazurcas, improvisos e valsas, outras com caráter nitidamente brasileiro, como a Dança de Negros e a Suíte Brasileira

Em seu livro sobre Nepomuceno e sua época, Avelino Pereira (2007) realiza um interessante estudo do ponto de vista histórico sobre a interação entre o compositor e a cultura musical do Rio de Janeiro em seu tempo. Como diretor do Instituto Nacional de Música, a mais antiga e importante instituição oficial de ensino musical do país, Nepomuceno, que ocupou o cargo por duas vezes (sendo que por dez anos no segundo mandato), viu-se em meio a inúmeras polêmicas a propósito da renovação do ensino de música e do aumento do quadro de professores, ficando com freqüência sob duplo fogo cruzado: a ingerência da política na administração do instituto e o debate entre a corrente nacionalista e uma outra, mais tradicional, influenciada pela música européia que era, em geral, sustentada pela imprensa conservadora. A despeito de tudo Nepomuceno soube manter uma postura coerente com suas idéias a propósito da música brasileira o que terminaria por provocar sua demissão no final de 1916, pondo fim a um longo período à frente do Instituto.

Uma testemunha importante da situação musical no Rio de Janeiro daquela época foi o compositor francês Darius Milhaud, que chegou ao Brasil no início de fevereiro de 1917, alguns dias antes do carnaval. A correspondência e as anotações de  Milhaud, bem como os numerosos textos sobre sua permanência no Brasil e suas relações com a música e os músicos brasileiros, representam uma fonte importante para o estudo deste debate e da própria vida musical no Rio de então. Entre esses textos encontram-se dois estudos pioneiros que colocam em evidência de maneira bem clara alguns aspectos menos conhecidos relativos à experiência vivida no Brasil pelo compositor: o primeiro é um ensaio do pianista e musicólogo Aloysio de Alencar Pinto, publicado no corpo do programa da apresentação, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em dezembro de 1980, do balé Le Boeuf sur le Toit (“O Boi no telhado”) – com novo enredo de Guilherme Figueiredo transpondo a ação para o Brasil –, e a tese de doutorado de meu colega Manoel Correa do Lago apresentada ao Programa de Pós-Graduação da UNIRIO em 2006.     

O texto de Alencar Pinto analisa a utilização, por Milhaud, de cerca de 25 temas da música popular na composição do “Boeuf sur le toit”, muitos deles sucessos do Carnaval de 1917. Esta pesquisa, complementada e ampliada por Correa do Lago, foi publicada na Latin American Music Revue, em 2002 .

Quanto ao segundo, trata-se da tese de Correa do Lago, acima citada, que revela diversos documentos inéditos, textos e correspondência, a fim de melhor esclarecer os relacionamentos de Milhaud com intérpretes e compositores brasileiros, tanto da música popular quanto daquela de concerto, durante e depois de sua estadia no Brasil.  Em seu trabalho, Correa do Lago nos transmite certas observações de Milhaud que indicam com precisão aquilo que  mais o impressionou, do ponto de vista musical, no Rio:  

[ … ao chegar ao Brasil ] fiquei fascinado pelos ritmos daquela música popular […] Portanto, comprei uma quantidade de maxixes e de tangos e experimentei tocá-los com os ritmos sincopados que passam de uma mão à outra. Por fim, meus esforços foram recompensados e consegui tanto tocar quanto analisar este sutil detalhe, tão tipicamente brasileiro” (Milhaud,1995:70-71, apud Correa do Lago) 1  

ou ainda:

seria desejável que os músicos brasileiros compreendessem a importância dos compositores de tangos, maxixes, sambas e cateretês como Tupinambá, e o genial Nazareth. A riqueza rítmica, a fantasia indefinidamente renovada, a verve, a animação e uma imaginação prodigiosa na invenção melódica que se encontram em cada obra destes dois mestres, fazem deles a glória e a jóia da Arte brasileira” (Milhaud, 1920:61, apud Correa do Lago) 2  

Nos anos que se seguiram, e até nossos dias a criatividade dos compositores-pianistas da música popular brasileira, como Eduardo Souto, Sinhô, Ary Barroso, Carolina de Meneses, Antonio Carlos Jobim (Tom), Sergio Mendes, Luiz Eça e Wagner Tiso, - para citar apenas alguns deles -, deu a esse tipo de música um renome internacional graças à beleza, à sofisticação e à vitalidade rítmica de sua obra.. Por outro lado, a grande maioria dos compositores mais representativos da música de concerto atribuiu ao piano, tal como Nepomuceno, uma parte substancial de sua produção e, pode-se dizer que, seguiu bem o conselho dado por Milhaud ao utilizar elementos e modelos oriundos da música popular e folclórica, esta fonte quase inesgotável de inspiração melódica e rítmica, que acabou por caracterizar de maneira tão vigorosa a escola nacionalista brasileira.

Este breve estudo pretendeu fornecer uma idéia aproximada do desenvolvimento de um setor dinâmico da cultura musical brasileira – sobretudo aquela do Rio de Janeiro – assim como também alguns de seus aspectos particulares, tais como a combinação histórica entre o erudito e o popular, cuja originalidade reflete bem a mistura étnica e a diversidade cultural que caracteriza nosso país. Ademais, o papel exercido pelo piano desenvolvimento, que vem desde a primeira metade do século XIX, foi um papel decisivo que, mais tarde, passou a compartilhar com as cordas dedilhadas de vários tipos, com a flauta e também com outros instrumentos de sopro no processo da formação musical brasileira. 

 

 

Bibliografia

 

Andrade, M.  – “ Pequena história da música” , Livraria Martins Editora, S. Paulo, 1977

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Correa do Lago, M.A, - “Brazilian Sources in Milhaud´s ‘ Le boeuf sur le Toit': a

                                           discussion and a musical analysis”, Latin American Music

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Oliveira, A. M..-“Relação da música popular com o piano Nacionalista” Dissertação

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                          nacionalistas”,  Tese de Doutorado / UFRJ, Rio de Janeiro 2005

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