Revista eletrônica de musicologia

Volume XII - Março de 2009

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Composição Musical a Partir de Dados Extra-Musicais *

 

 

Luiz Eduardo Castelões Pereira da Silva

 

 

Resumo: O presente artigo é uma síntese da metodologia empregada em minha dissertação de mestrado intitulada “Composição Musical a Partir de Dados Extra-Musicais” (UNI-RIO, 2004). O que se propõe é um estudo da composição musical feita a partir de dados extra-musicais que enfatize a análise dos critérios de correspondência entre música e outras disciplinas em obras musicais específicas e cujas conclusões sejam também avaliadas através da prática da composição musical. Desta forma, pretende-se oferecer uma alternativa às metodologias interdisciplinares mais comumente utilizadas, as quais se caracterizam ora por uma abordagem mais voltada para a agenda das disciplinas extra-musicais empregadas, ora por uma abordagem com fins exclusivamente musicológicos (sem foco na prática da composição musical propriamente dita).

 

Tema.

Este trabalho discorre sobre música composta a partir de (ou com o auxílio de) dados extra-musicais. O tema é abordado sob o ponto de vista dos procedimentos utilizados para o estabelecimento de correspondências entre estes dados, concentrando-se nos domínios da linguagem verbal e da matemática, e dados da composição musical (parâmetros sonoros e procedimentos composicionais).

A questão que orienta o estudo é: ao se utilizar um conhecimento extra-musical para a composição, através de que procedimentos serão estabelecidas correspondências de maneira adequada à intenção criativa (e à escuta) do compositor em cada caso (em cada obra), já que não há necessariamente relação direta entre os dados constitutivos das áreas extra-musicais aqui abordadas e a música, sendo necessário o estabelecimento de correspondências muitas vezes arbitrárias?

O estudo se desenvolve sobretudo a partir da análise dos procedimentos de correspondência utilizados nas obras que compus durante o mestrado (acrescidos de procedimentos utilizados em obras do século XX).

Objetivos.

O objetivo principal deste trabalho é a demonstração de formas de estruturação da composição musical com uso de conhecimentos extra-musicais, com foco na análise e descrição dos procedimentos julgados como adequados, em cada caso, ao estabelecimento deste tipo de correspondência. A palavra adequados , neste caso, engloba duas exigências: 1) que os procedimentos utilizados sejam capazes de preservar as características principais (selecionadas e definidas caso a caso) de estruturas e conceitos extra-musicais após sua reprodução em música; 2) que eles o façam de maneira que os resultados obtidos sejam estruturas, procedimentos e especulações úteis à atividade da composição musical. No âmbito deste trabalho, a expressão úteis à atividade da composição musical se refere, em linhas gerais, a estruturas que contenham repetição e contraste, a procedimentos que envolvam técnicas de variação e ampliação de segmentos musicais e a especulações estéticas que contribuam para a constituição, reavaliação e crítica das composições musicais criadas. A adequação dos procedimentos é avaliada e obtida por meio do intelecto e da escuta.

Conforme se acumularam procedimentos de correspondência entre a disciplina extra-musical e a composição, foram compostas obras instrumentais e eletroacústicas (mistas e acusmáticas) como forma de demonstração do funcionamento dos procedimentos pesquisados. O trabalho apresenta, portanto, de um lado um caráter descritivo e, de outro, uma demonstração prática através das composições musicais criadas.

Justificativas.

Qual a importância de se desenvolver um estudo que se dedique à composição a partir de idéias extra-musicais? E qual a justificativa para determinar como foco deste estudo os procedimentos de correspondência utilizados?

A questão pode ser parcialmente respondida através da análise de características da trajetória da composição de música de concerto no séc. XX. Podemos identificar duas grandes tendências que parecem contribuir para a importância do uso de conhecimentos extra-musicais na composição:

1) a negação de certos aspectos da tradição da música ocidental , presente de formas diferentes nas obras de boa parte dos compositores do século XX; um exemplo seria o de que com a dissolução do tonalismo, a organização da forma, anteriormente baseada na harmonia tonal, se vê desprovida de seus princípios tradicionais de estruturação – e Schoenberg, em seu Pierrot Lunaire , recorre à estrutura do texto como orientação da estrutura musical (Oliveira, 2002); outros exemplos incluem a emancipação do ruído na obra do futurista Luigi Russolo (1885-1947), o componente serial da Segunda Escola de Viena e a estruturação da forma via técnicas instrumentais estendidas no primeiro quarteto de cordas (1972) de Helmut Lachenmann (n. 1935).

2) a multiplicação de tradições musicais conhecidas; sobretudo a partir do século XX, devido ao avanço dos meios de comunicação e transporte, nossos conhecimentos musicais não se limitam a nosso tempo e ao espaço em que habitamos, podemos ouvir música de lugares onde nunca estaremos, música executada décadas antes de nosso nascimento, por intérpretes que não estão mais entre nós. A diversidade de culturas com as quais travamos contato estabelece, assim, uma multiplicidade de músicas e de princípios organizacionais possíveis. A este respeito, Boulez (1992) atesta que:

 

Uma realidade específica do nosso século é o alargamento do nosso campo de visão, e portanto o aumento de possíveis confusões ou indecisões. A civilização moderna alterou definitivamente determinados conceitos, considerados totalmente intocáveis, ao abrigo de qualquer conflito de opinião. Aconteceu que ela – culturalmente, bem entendido – nos deu a possibilidade de um movimento no tempo e no espaço, fez com que nosso entendimento e nosso sentimento batesse contra recifes dos quais tínhamos a priori apenas conhecimentos vagos e tranqüilizadores, estabeleceu a igualdade dos direitos que o colonialismo ou o exotismo haviam desfigurado de forma extrema. Progresso, verdade, o absoluto: aqui alguns estrépitos perderam-se no vento… Falamos hoje mais de deslocamentos de interesse do que do progresso de mão única; em vez de referirmo-nos a uma verdade, fazemo-lo antes às relações e vinculações de um sistema de pensamento que é por si só conseqüente com respeito a origens, meios e resultados; e vemos o grande absoluto como uma soma inteiramente relativa de pequenos absolutos… Não mais verdade aqui – equívoco lá; em vez disso, talvez, equívoco por todos os lados, contribuindo para a formação de uma verdade multiforme e variável. (p.55)

 

Se, no caso da atitude de negação de aspectos da tradição , o problema era, diante da destruição de uma norma , substituí-la por outra norma , no caso da multiplicidade de princípios musicais, a dificuldade estaria em escolher ou conceber uma norma diante da torrente de informação musical a que estamos submetidos. A palavra norma aqui está despida de seu aspecto dogmático mais severo, denotando tão simplesmente os princípios organizacionais que regem uma obra.

Kiefer (1990) se refere a este fenômeno ao relacionar a isorritmia do século XIV e o serialismo do século XX através das seguintes palavras:

 

É importante sentirmos bem a problemática que levou à criação de tais sistemas, tanto no século XIV como no nosso: ampliou-se um campo de possibilidades e como decorrência surgiu a necessidade de novos sistemas de estruturação. (p. 46)

 

O argumento dos parágrafos anteriores pode ser refutado pela seguinte pergunta: seria mesmo necessário, ao se derrubar uma norma, substituí-la por outra? Obviamente, que me limito a levantar esta questão no âmbito da composição. Minha primeira reação é responder que não, ao pensar em movimentos artísticos que valorizariam o “instinto”, a “intuição”, o “inconsciente”, o “automatismo”, o “irracional”, e assim por diante. Entretanto, a fragilidade deste argumento é demonstrada (sem que mesmo seja necessário buscar definições rigorosas para as instâncias supracitadas) através de algumas observações lógicas: 1) a orientação para que não haja norma é ela própria uma norma; 2) a capacidade do homem de acessar níveis de significação recorrentemente superiores (pensando uma atividade enquanto ele a faz, depois pensando sobre o próprio pensamento e assim sucessivamente) torna difícil de imaginar uma atividade humana em que o pensamento (e, portanto, a atribuição de princípios de organização) possa ser banido; 3) admitindo-se que isto fosse possível, ou seja, que uma obra de arte pudesse ser concebida completamente à revelia do pensamento, restaria o espectador da obra, o qual não estaria impedido de encontrar princípios organizacionais numa obra teoricamente concebida sem princípios organizacionais (afinal, o que é uma obra: é o objeto em si ou a abordagem receptiva que se tem do objeto? Caso ousássemos escolher a primeira opção, estaríamos obrigados a resolver o seguinte problema: quem seria o responsável pela análise do que é o objeto em si ?). Repare que não se afirma aqui que a concepção e recepção de uma obra ocorram exclusivamente através do pensamento, mas o contrário, isto é, que separar por completo o pensamento da arte seria provavelmente uma tarefa impossível.

Tendo ressaltado então a problemática de se conceber uma arte destituída de pensamento, tanto na criação quanto na recepção, assumirei para as finalidades deste trabalho a posição de que em toda música pode-se vislumbrar norma (princípios organizacionais).

Voltando ao cerne da questão (a respeito da validade e atualidade de se recorrer a conhecimentos extra-musicais para se produzir música), pode-se afirmar portanto que, em ambos os casos (tanto no caso da negação de aspectos da tradição , quanto no da multiplicidade de tradições ), os conhecimentos extra-musicais representam um caminho possível, oferecendo modos de organização variados, como provam as obras musicais de compositores do século XX que recorriam a outras disciplinas no auxílio à composição, como Olivier Messiaen e a ornitologia, Iannis Xenakis e a matemática/arquitetura, além do exemplo de Schoenberg já citado.

Quanto a este último exemplo, vale ressaltar que moldar a música a partir de um texto não é obviamente invenção de Schoenberg ou do século XX. Neste sentido, é necessário esclarecer que embora a abrangência das referências musicais deste trabalho se concentre no século XX, não se pretende com isto propor que a composição a partir de elementos extra-musicais seja privilégio deste século.

Outra observação fundamental é que muitas vezes o conhecimento extra-musical acaba por confirmar procedimentos consagrados pela tradição musical, estando o compositor consciente disto ou não. Ou seja, o que antes poderia configurar-se como um refúgio, ou uma alternativa à tradição, termina de fato (e paradoxalmente) reforçando-a (Taborda, 2000).

Por outro lado, justifica-se a confecção deste trabalho pela constatação de que, embora temas extra-musicais aplicados à composição venham sendo comumente investigados em estudos acadêmicos (prova disso é a extensa bibliografia encontrada sobre música associada à matemática e à lingüística), o aspecto aqui focalizado – dos procedimentos para a conversão dos dados de um universo para o outro – é na maior parte das vezes pouco explorado especificamente em relação à composição musical, em benefício ora de uma abordagem mais centrada na disciplina extra-musical empregada, ora de abordagens com fins exclusivamente musicológicos (sem foco na prática da composição propriamente dita).

Metodologia.

A linha de pesquisa adotada foi a de Linguagem e Estruturação Musicais. Tratando-se da composição de obras contemporâneas, o trabalho desenvolveu-se de forma tanto prática (obras musicais criadas) quanto descritiva (dissertação).

Para a realização da parte descritiva, o método utilizado foi o da reconstrução lógica de uma trajetória de investigações a respeito da relação música/linguagem verbal e música/matemática que inclui: 1) a consulta a parte da bibliografia que traça paralelos entre as 3 áreas, na qual figuram Lévi-Strauss (1971, 1991), Nyman (1981), Sloboda (1985), Boulez (1986a, 1986b, 1992, 1995), Wisnik (1989), Xenakis (1992), Tarasti (1994), Steinitz (1996), Roads (1996), Campos (1998), Abdounur (1999), Hofstadter (2001), Oliveira (2002) e Monelle (2002); 2) o estudo preliminar de aspectos pontuais da lingüística, ciência que se dedica à linguagem verbal, sobretudo através de Crystal (2000), Dubois (2001), Biderman (2001), Saussure (2002) e Man (2002); 3) e o estudo preliminar de aspectos pontuais da matemática, através de Copi (1978), Courant & Robbins (2000), Hofstadter (2001), Filho (2002) e da supervisão de especialistas em matemática – as professoras Maria Carolina Nizarala Martinez e Michelle Dysman (ambas da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro).

Os autores citados apenas oferecem subsídios para a transferência de conceitos de um universo para o outro. Não se trata aqui do aprofundamento e reavaliação de suas obras, cujo alcance ultrapassaria em muito os propósitos deste trabalho – mas, tão somente, do que eles formularam (ou do que deles pôde ser útil) em relação ao tema proposto.

Ao longo desta investigação, o intercâmbio entre música e linguagem verbal é mediado pela lingüística ( ciência da linguagem , conforme supracitado). Tendo a lingüística múltiplas áreas de estudo, procedeu-se previamente a um trabalho de seleção, para restringir o campo de atuação e definir aspectos específicos de interesse. A bibliografia foi então submetida a uma leitura dirigida que se atinha apenas ao que pudesse ser reproduzido no âmbito da composição, segundo os moldes já descritos de utilidade para a composição musical (tratando-se de uma atividade de criação é inevitável que a utilidade a que me refiro esteja imbuída de subjetividade). É importante frisar, portanto, que o foco não está na lingüística, mas na maneira como algumas idéias desta puderam ser produtivas para o trabalho de criação musical e nos procedimentos através dos quais estas idéias foram reproduzidas em música - tendo sempre como ponto de partida e como meta a composição, a lingüística funcionou como meio, como instrumento realizador de idéias. A matemática foi submetida ao mesmo processo de leitura dirigida .

Por vezes, o estudo da lingüística (ou da matemática) fornece apenas uma maior proximidade com os objetos de estudo destas disciplinas – e o aspecto retirado da linguagem verbal, ou da matemática, passa a não ter interesse fundamental para as referidas ciências quando descontextualizado para a música. Isto explicita a não-intenção deste trabalho em servir a objetivos de outras disciplinas – ele só tem relevância para a composição musical.

Em suma, o objetivo não é de modo algum tentar esgotar a relação música/linguagem verbal e música/matemática, mas apenas definir e caracterizar aspectos pontuais nos quais esta relação se revelou pertinente à composição musical (especificamente no que se refere à parte criativa desenvolvida em conjunto a esta dissertação). Esta leitura dirigida remete à idéia de “pertinência”, oriunda da lingüística e definida por Barthes da seguinte forma:

 

(...) decide-se o pesquisador a descrever os fatos reunidos a partir de um só ponto de vista e, por conseguinte, a reter, na massa heterogênea desses fatos, só os traços que interessam a esse ponto de vista, com a exclusão de todos os outros ( esses traços são chamados pertinentes ). (Barthes, 2001: 103) [grifos do autor]

 

Assim sendo, adoto neste trabalho a postura de abordar a lingüística e a matemática do ponto de vista estrito da composição musical, selecionando naquelas apenas os “fatos” pertinentes a esta (“pertinentes”, inevitavelmente, sob meu ângulo de visão e com base também na referência a trabalhos de compositores do passado). Trata-se de abordar as ciências de um ponto de vista artístico – sem ambições científicas.

Antes de desenvolver o tema, serão feitas as últimas considerações e ressalvas a respeito da metodologia aqui adotada em função dos objetivos principais do trabalho, e das conseqüências de se proceder a um intercâmbio de tal natureza.

Analogias entre disciplinas diferentes muitas vezes requerem uma adaptação e um certo artificialismo (que podem, para algumas finalidades, invalidar a analogia). Sendo assim, a transferência da lingüística e da matemática para a música terá no âmbito deste trabalho um objetivo meramente composicional, e ocorrerá de maneira assumidamente "lúdica" (Huizinga, 2001), com vistas à criatividade:

 

O elemento lúdico é de tal forma inerente à poesia, todas as formas de expressão poética estão de tal modo ligadas à estrutura do jogo, que é forçoso reconhecer entre ambos a existência de um laço indissolúvel. O mesmo se verifica, e ainda em mais alto grau, quanto à ligação entre o jogo e a música. (…) em diversas línguas se chama “jogo” à manipulação dos instrumentos musicais, como na língua árabe, por um lado, e por outro, nas línguas germânicas e eslavas. (…) o jogo situa-se fora da sensatez da vida prática, nada tem a ver com a necessidade ou a utilidade, com o dever ou com a verdade. Ora, tudo isto pode aplicar-se também à música. Além disso, as formas musicais são determinadas por valores que transcendem as idéias lógicas, que transcendem até nossas idéias sobre o visível e o tangível. (p.177)

A utilização de elementos de outras disciplinas não ocorre aqui tampouco com o intuito de se legitimar a música, ou de criar qualquer novo dogma, ou correspondências de pretensões universais – não se trata de compor “Música das Esferas” (James, 1993; Kramer, 1995; Abdounur, 1999; Schafer, 2001). Permite-se assim uma maior liberdade para que a atividade da composição imprima adaptações a idéias de outras disciplinas. E estas idéias não serão submetidas a uma busca da equivalência a todo custo, pelo contrário, suas eventuais desarmonias, inadequações e intraduzibilidades serão acolhidas e descritas de forma resignada.

Escolhi proceder desta forma porque idéias que têm validade em determinada disciplina não se aplicam necessariamente de forma direta à composição musical (e têm que sofrer uma adaptação, que vez ou outra descamba para a deformação da idéia original).

E para a atividade da composição (observada aqui de maneira ampla, generalizada), estas adaptações e deformações não representam obrigatoriamente um demérito, já que idéias contraditórias e não-contraditórias são por ela acolhidas com a mesma receptividade – ou, nas palavras de Boulez (1992) e Roads (1996):

 

a música é incapaz de ser o advogado de idéias racionais; ela suporta todas, ou não suporta nenhuma, sem discriminação: trai-se a sua natureza ao tentar imputar-lhe conceitos que lhe são estranhos. (Boulez, 1992: 47-48).

 

Simplesmente porque certos parâmetros de uma peça seguem uma série dodecafônica ou obedecem a um conjunto arbitrário de axiomas não é nenhuma garantia de que o ouvinte vá escutar consistência ou originalidade no produto final. Consistência e originalidade musicais são categorias cognitivas para as quais ainda existe pouca teoria. (Roads, 1996: 846)[1]

 

Poder-se-ia, entretanto, objetar que em determinadas modalidades de composição, na obra de determinados autores, procura-se banir o elemento ilógico (é comum que se faça referência ao serialismo integral, por exemplo, ao se defender tais idéias). Em primeiro lugar, isto não significa que estas obras sejam mais representativas em relação à atividade da composição do que as obras de autores que acolhem com naturalidade o ilógico. Em segundo lugar, procurar não significa necessariamente conseguir . Na prática, a teia de relações entre os diversos aspectos da composição (parâmetros sonoros e procedimentos composicionais) é tão intrincada e incomensurável em sua totalidade que, tão logo tenhamos encontrado lógica em determinado aspecto, descobriremos tantos outros para os quais não há lógica e vice-versa (em outras palavras, não parece haver provas da relação direta entre lógica e “consistência/originalidade” na composição).

O compromisso é, portanto, com possíveis benefícios advindos do uso de conhecimentos da lingüística e da matemática na composição (fornecendo, sobretudo, diretrizes para o planejamento composicional) em vez da confecção de um amplo estudo analítico-comparativo entre lingüística, matemática e música, embora reconheça-se que quanto mais acurada a compreensão das referidas disciplinas, melhor será sua utilização. E, por isso, a metodologia inclui uma relativa imersão nos aspectos pontuais destas matérias que foram aqui utilizados para a composição, contando inclusive com a crítica de especialistas.

Outro risco do método aqui empregado é incorrer nos problemas levantados por Copi (1978: 81) quanto ao “apelo à autoridade”, os quais podem resultar, por exemplo, numa falácia em argumentação que consiste em apelar a uma autoridade de determinada disciplina para justificar um fato numa outra disciplina – fora de sua competência. É um dos riscos da interdisciplinariedade. As autoridades deste estudo são, em última instância, a escuta e o intelecto aplicados à composição musical.

Conscientizando-se do fim último deste trabalho – a criatividade – deve-se evitar tomar os extratos de autores de outras disciplinas como justificativa ou legitimação do trabalho de composição musical; trata-se de uma leitura dirigida , da apropriação e transporte de modelos de pensamento de outras áreas – com todas as conseqüências daí advindas: dentre as quais a deformação, a fragmentação e a descontextualização já ressaltadas.

Será útil também permanecer atento às críticas de Sokal & Bricmont (2001) no que se refere às ciências humanas quando se utilizam de aspectos das ciências exatas e das ciências naturais: 1) evitando colocar idéias científicas fora de contexto sem justificativa; 2) evitando o que eles chamam de “estruturalismo extremo” (p.26), que ocorre quando autores tentam atribuir a discursos no campo das ciências humanas um tom de “cientificidade” invocando algumas aparências externas da matemática. Neste trabalho especificamente, não se pretende conferir à música nenhum tom de “cientificidade”. Não se pretende em nenhum momento uma analogia mais profunda do que a da transferência para a composição musical de conceitos ou estruturas recortados da matemática e da lingüística – e o intuito deste trabalho passa longe da sugestão de que linguagem verbal, matemática e música operem da mesma forma. [2]

A maneira de evitar tal equívoco na interpretação dos propósitos deste trabalho será mostrar abertamente a descontextualização a que as idéias transportadas de outras disciplinas são submetidas quando utilizadas na composição musical e caracterizar o objetivo da empreitada no âmbito da poética e não do cientificismo. Bem como declarar (se necessário) o desapego em relação à função primeiramente científica da idéia transportada, redefinindo sua função agora no âmbito da composição. O foco está portanto nas idéias em si, nos raciocínios que elas empregam, no mecanismo que elas induzem, e não em suas funções científicas originais.

Para encerrar este item, vale revisitar algumas amostras (por vezes conflituosas) do relacionamento entre compositores e pesquisas (suas ou de outrem) aliando arte e ciência:

1) a defesa de Matossian (1985) a Xenakis, devido a críticas que este recebia tanto de cientistas quanto de músicos por aliar arte e ciência:

 

Críticos têm sido freqüentemente confundidos pelo equilíbrio entre ciência e música, uma confusão várias vezes alimentada pela própria retórica de Xenakis. Seus insultos favoritos no passado eram “cientista, tecnocrata, filósofo, mas não um músico.”, enquanto cientistas eram rápidos ao apontar inconsistências, erros e procedimentos “não-científicos”. Mesmo se toda a ciência e toda a matemática às quais ele faz recurso e as explicações que ele fornece estivessem completamente errôneas, seu envolvimento com esses assuntos não estaria invalidado, pois ele nos dá algo que só um artista pode dar – um quadro dinâmico do universo informado pela ciência de hoje. (p. 243-244)[3]

 

2) a crítica de Cage (Kostelanetz, 1970) sobre as justificativas matemáticas do trabalho de Milton Babbitt:

 

(…) ele [Babbitt] está fazendo algo que então é parte de nosso ambiente – um objeto que ele coloca fora de si mesmo, que ele coloca fora de nós, e sobre o qual ele então tem que escrever longos artigos, e assim por diante; e além disso ainda tem aquela Perspectives of New Music e todo aquele assunto matemático com o intuito de convencer-nos de que, se não concordamos no plano da audição, seremos obrigados a concordar em um plano matemático. (p.14) [4]

 

 

3) a ressalva de Boulez (1986a) no final do trecho a seguir (texto original de 1951), ao proceder a formalizações matemáticas dos parâmetros sonoros em sua música, alertando não se tratar de uma “teoria algébrica das relações musicais”:

 

É possível pensar que uma série em geral possa ser definida por uma função de frequência f(F), a qual pode ser estendida a uma função de duração f(t), uma função de intensidade f(i), etc., onde a função não muda, mas apenas a variável muda.

Finalmente, a uma estrutura serial pode ser dada a definição global:

F (f(F), f(t), f(i), f(a))

 

Símbolos algébricos são empregados com o intuito de se concretizar estes vários fenômenos com precisão, e não para sugerir nenhuma teoria algébrica efetiva das relações musicais. (p.141) [5] [grifos do autor]

  4) em outro momento (conferência realizada entre 1960 e 1965), vemos um Boulez (1992) extremamente crítico quanto à aliança entre música e ciência:

A chamada mania matemática – melhor dizendo: a mania pseudocientífica – pode aparentemente satisfazer, desde que ela engendre a ilusão de uma ciência exata, irrefutável, baseada em fatos precisos: ela dá a impressão de apresentar fatos objetivos com a máxima autoridade. Poder-se-ia voltar à concepção da Idade Média: a música é uma ciência e, como tal, exige uma abordagem centífica, racional; tudo deve ser definido tão claramente quanto possível, demonstrado, ordenado a partir dos modelos já existentes em outras disciplinas e emprestados das ciências exatas. Piedosa ilusão! Há, primeiro, a inexperiência do músico em relação a um vocabulário que ele maneja sem leveza nem brilho, sem gênio inventivo e sem imaginação; não mencionemos nem mesmo as inexatidões do seu vocabulário e as lacunas do seu conhecimento… Mas, supondo uma perfeita correção no emprego dos conceitos e dos termos, estamos diante apenas de uma imitação estéril: tira-se a força do pensamento científico, sem enriquecer o pensamento musical.

Não se pode deixar de sorrir diante de certos diagramas, de certos estudos, abarrotados até a loucura de permutações que não interessam a ninguém. Todos estes paralelismos com o pensamento científico permanecem desesperadamente superficiais e se revelam inúteis, porque não são adequados ao verdadeiro pensamento musical. Toda reflexão sobre a técnica musical deve ter origem no som, na duração, em suma: no material com que o compositor trabalha; cobrir esta reflexão com uma rede de outra ordem de idéias leva forçosamente à caricatura, e que caricatura! Estudar certas formas de permutações, por exemplo, não nos pode convencer da qualidade de sua realização no objeto ou na estrutura sonoros. Quem me garante que a forma cifrada, que me descrevem até o último detalhe, pode assumir, pela sua mera existência, a responsabilidade de uma estrutura musical? Quem me prova que as leis numéricas, válidas em si mesmas, continuam válidas quando são aplicadas a categorias que elas não governam? (p.32-34) [grifos do autor]

5) alguns parágrafos adiante, Boulez (1992) reflete uma posição mais moderada, concluindo que a transposição de idéias da ciência para as artes pode ser benéfica, desde que feita através de “analogias” e não pela “aplicação literal”:

Isso quer dizer que me oponho a toda interferência, a toda comunicação? Longe de mim tal isolacionismo. Reconheço que nada é mais frutífero que o contato com outra disciplina: ela nos oferece uma maneira diferente de ver as coisas, enriquece-nos com pontos de vista nos quais não teríamos pensado antes, estimula a nossa inventividade e obriga a nossa imaginação a uma “radioatividade” mais elevada. Uma influência deste tipo só pode operar por analogia, não por aplicação literal desprovida de fundamento. A meu ver, o enriquecimento mais importante reside nos níveis mais profundos das estruturas mentais: dessa maneira, a imaginação incorpora recursos tomados alhures e adequados a esta finalidade: trata-se de uma espécie de nutrição. Certas descobertas do pensamento filosófico ou científico exigem uma transposição, antes de assumirem uma nova significação que nem a justaposição superficial nem o paralelismo aplicado poderiam lhe dar. Em suma, a imaginação do compositor faz dessas aquisições um dado irredutivelmente musical, uma noção específica e irreversível. (p. 36-37)

    Estrutura.

A disposição final da dissertação segue o seguinte esquema:

No capítulo I, aborda-se a contribuição da linguagem verbal à pesquisa de procedimentos de correspondência entre música e extra-musical, a partir dos conceitos de transcrição (Hofstadter, 2001), recursividade (Crystal, 2000; Dubois et al, 2001), arbitrariedade e iconicidade (Crystal, 2000; Saussure, 2002; Tarasti, 1994) e narratividade (Nattiez, 1990; Kramer, 1995; Monelle, 2002).

No capítulo II, aborda-se a contribuição da matemática à pesquisa de procedimentos de correspondência entre música e extra-musical, a partir dos conceitos de transcrição (Boulez, 1986b), recorrência (Gleick, 1989; Courant & Robbins:2000; Hofstadter, 2001), e argumento lógico (Copi, 1978; Filho, 2002).

No capítulo III, reavalia-se e manipula-se o tema principal do trabalho com base nas contribuições dos dois primeiros capítulos, de forma a antecipar desdobramentos decorrentes da pesquisa empreendida e expostos em seguida de maneira sistematizada e sintética nas “Conclusões”.

Notas

[1] Simply because certain parameters of a piece follow a twelve-tone series or conform to an arbitrary set of axioms is no guarantee that the listener will hear consistency or originality in the final product. Musical consistency and originality are cognitive categories for which little theory yet exists.

[2] Abdounur (1999): “Cabe lembrar que a matemática não pretende explicar completamente música e nem o contrário, assim como quaisquer outras relações estabelecidas entre duas capacidades intelectuais não apresentarão tal objetivo, até porque cada aptidão possui natureza própria, impossível de se determinar totalmente a partir de estrutura/dinâmicas pertinentes a outra competência. As analogias e relações observadas possuem sempre caráter parcial.” (p. 299).

[3] Critics have often been confused by the balance of science and music, a confusion often fuelled by Xenakis' own rhetoric. Their favourite insult in the old days was ‘scientist, technocrat, philosopher but not a musician.', while scientists were quick to point out inconsistencies, errors and ‘unscientific' procedures. Even if all the science and all the mathematics to which he takes recourse and the accounts he gives were completely erroneous, his involvement with these subjects would not be invalidated, for he gives us something only an artist can give – a dynamic picture of the universe informed by the science of today.

[4] (…) he´s making something that then is part of our environment – an object which he puts outside of himself, which he puts outside of us, and which he then has to write long articles about, and so forth; and then to have that Perspectives of New Music and all that mathematical business in order to convince us that, if we didn´t agree on an ear level, we will be obliged to agree on a mathematical level.

[5] It is possible to think that a series in general can be defined by a frequency function f(F), which may be extended to a duration function f(t), an intensity function f(i),etc., where the function does not change, but only the variable changes.

Finally, a serial structure may be given the global definition:

 

F (f(F), f(t), f(i), f(a))

 

Algebraic symbols are employed in order to concretize these various phenomena precisely, and not to suggest any actual algebraic theory of musical relationships.

 

Referências Bibliográficas:

 

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* O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq – Brasil, e da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).