Revista eletrônica de musicologia

Volume XII - Março de 2009

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O Conservatório de Música do Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul: Primeiros anos (1908-1912)

 

Leonardo Loureiro Winter (UFRGS)* 

Luiz Fernando Barbosa Junior (UFRGS/FAPERGS)*

 

 

Resumo: O artigo aborda a fundação, formação e primeiros anos (1908-1912) do Conservatório de Música do Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul resgatando parte da história do ensino musical desta instituição. Fundado em 1908 na cidade de Porto Alegre, o Instituto de Belas Artes do RS é uma das mais antigas e importantes instituições de ensino artístico-musical do Brasil. Inicialmente constituída como uma sociedade particular de ensino às artes e música estruturou-se em duas seções: o Conservatório de Música e a Escola de Artes. A metodologia se processou através de pesquisa bibliográfica e documental na reconstrução da situação sócio-econômica e cultural do Rio Grande do Sul no final do século XIX e início do século XX e sua influência na fundação do Conservatório de Música. Os cursos, conteúdos curriculares, estrutura física, relatórios financeiros e principais personagens são examinados reconstruindo parte da história inicial da instituição.

 

 

Introdução

 

Fundado em 1908 na cidade de Porto Alegre, o Instituto de Belas Artes desempenha um relevante papel a serviço da cultura do Estado do Rio Grande do Sul e do Brasil. Idealizado pelo então Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, Dr. Carlos Barbosa Gonçalves (1908-1913), o Instituto de Belas Artes do RS completa no ano de 2008 cem anos de existência. Nesse ínterim formou diferentes gerações de artistas, músicos, pesquisadores e professores que influenciaram de maneira decisiva a transformação cultural do Estado e do País. Inicialmente constituída como uma sociedade de incentivo à música e às belas artes, o instituto foi então mantido graças ao auxílio financeiro do Estado e município de Porto Alegre, de taxas de alunos e de contribuições da sociedade riograndense da época. Em 1962 o Instituto de Belas Artes do RS foi encampado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sendo atualmente constituído pelos Departamentos de Música, Artes Visuais e Artes Cênicas.

 

 

I – O ESTABELECIMENTO DAS SOCIEDADES MUSICAIS NO RS: CONTEXTUALIZAÇÃO

 

A instabilidade política e a excessiva centralização administrativa do Brasil Império (1822- 1889) foram elementos que dificultaram a organização e desenvolvimento da sociedade brasileira no século XIX. O primeiro e segundo reinados brasileiros e, principalmente, o período regencial foram marcados por revoltas internas e guerras externas que dificultaram o desenvolvimento econômico e a organização social nas províncias. No Rio Grande do Sul a instabilidade política provocada pela Revolução Farroupilha (1835-1845) teve como conseqüências o atraso na organização da sociedade civil e de instituições voltadas à formação profissional. Finda a Guerra do Paraguai (1870) e com o advento da República (1899) tem início um período de estabilidade econômica, social e política que proporcionou a organização das primeiras escolas superiores de ensino no Rio Grande do Sul: em 1897 é fundada a Escola de Engenharia, em 1898 a Faculdade de Medicina e em 1900 a Faculdade de Direito na cidade de Porto Alegre.

O início do século XX no Brasil e, particularmente no Rio Grande do Sul, se caracterizou como um período de orientação progressista e positivista. Buscava-se a afirmação da nação perante o mundo, a identificação com os países desenvolvidos e a transformação da realidade nacional. A busca dos ideais de ordem e progresso e o cultivo dos “bons costumes” tiveram reflexos na organização e disseminação da música culta no Brasil e no Rio Grande do Sul. Maria Elizabeth Lucas identifica três diferentes momentos no fazer musical no Estado do Rio Grande do Sul no período da primeira metade do século XIX até o início do século XX:

 

O primeiro momento (da primeira metade do século XIX ao final da década de 1870) compreende uma fase na qual a música inexistia como atividade independente, estando associada ao culto religioso ou ao teatro, sendo profissão ligada às camadas inferiores da população; o segundo momento (década de 1880-1890) corresponde à expansão do amadorismo sob a forma de sociedades de concertos organizadas por e para elementos da classe dominante e setores médios urbanos [...]; o terceiro período refere-se à reavaliação da música como profissão a partir de contatos com padrões importados, passando a ser exercida pela classe dominante/setores médios e incorporando das etapas antecedentes aspectos do amadorismo que possam distanciá-la de qualquer associação com o trabalho das camadas sociais inferiores (LUCAS 1980, p. 151).

 

 

Outro importante fator que contribuiu para o desenvolvimento e organização cultural da nova sociedade que se pretendia forjar foram as levas de imigrantes que passam a chegar ao Brasil no final do século XIX. No Rio Grande do Sul a presença preponderante de imigrantes italianos e alemães influenciou a organização, expansão e disseminação musical através da formação de sociedades de concerto, formadas em sua maioria por amadores. Quanto à expansão do amadorismo na organização de sociedades de concertos no final do século XIX em Porto Alegre, identificamos a existência de diferentes organizações a testemunhar a intensa atividade musical na capital riograndense, entre elas a Sociedade Filarmônica Porto Alegrense (1878), o Instituto Musical Porto-Alegrense (1896) – posteriormente transformado em Club Haydn (1897) – além de diversas estudantinas [1] e bandas musicais.

(FIG. 1) – Sociedade de concertos sinfônicos “Club Haydn” do RS.

Estas sociedades privadas de concertos que se desenvolveram no final do século XIX em Porto Alegre tinham como principal objetivo a promoção cultural e recreativa dos seus associados. Além de servirem como ponto de encontro da sociedade local aulas particulares de instrumentos musicais eram ministradas bem como oferecidas récitas públicas. No final do século XIX a formação musical dos porto-alegrenses era preenchida, conforme aponta Rodrigues, por programações musicais desenvolvidas pelas companhias líricas itinerantes, pelas retretas, pelas sociedades musicais e através do ensino informal de professores particulares (RODRIGUES 2000, p. 21). A atuação das sociedades de concerto na cidade de Porto Alegre teve como conseqüência o início da especialização musical por membros da sociedade local em centros musicais mais desenvolvidos, seja na capital da República (na cidade do Rio de Janeiro) e, principalmente, em conservatórios musicais de países europeus como Itália, Alemanha e França. Ainda conforme Rodrigues (idem), “... na virada do século alguns músicos porto-alegrenses, com intuito de aprofundar seus conhecimentos musicais, envolveram-se no projeto de buscar no centro do país ou na Europa formação musical em instituições especializadas”. A alguns desses músicos eram oferecidas ajudas financeiras na forma de bolsas de estudos financiadas pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul, que ocasionou por tornar vantajosa a implantação de uma instituição superior de ensino artístico–musical local. Diferentemente do século XIX, onde o ensino das artes e música era atribuição de particulares, buscava-se no início do século XX em Porto Alegre a fundação e estabelecimento de uma instituição que oferecesse formação local aos músicos e artistas do Rio Grande do Sul.

 

 

II – O Instituto LIVRE de Belas Artes do Rio Grande do Sul

 

 

Em abril de 1908 o Presidente do Estado do Rio Grande do sul, Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, envia correspondência endereçada a cidadãos de destacada posição social na cidade de Porto Alegre tendo como intuito promover a fundação de um Instituto Livre de Belas Artes. Através dessas cartas convidava-os a fazerem parte de uma comissão responsável pela fundação e organização do nascente instituto:

 

Iniciador da fundação de um Instituto Livre de Belas Artes desvaneço-me em convidar-vos para fazerdes parte da comissão que deve promover a real fundação e organização de tão útil estabelecimento, ao qual ligareis vosso louvado nome, cooperando efficazmente para o desenvolvimento artístico de nossa terra. Confiante em vossa elevada cultura intellectual espero merecer o vosso franco apoio e concurso. (INSTITUTO DE ARTES, p. 7)

 

Embora se possa identificar a iniciativa da fundação do Instituto Livre de Belas Artes como sendo do Presidente Carlos Barbosa, seu propósito deve ser entendido em um contexto mais amplo de exaltação à filosofia republicana no Estado e na crença no “progresso e cultivo dos bons costumes” como elementos formadores da cidadania. Conforme atesta Círio Simon:

 

As origens do Instituto Livre de Belas Artes do Rio Grande do Sul aconteceram num verdadeiro projeto civilizatório regional republicano, implantado no Rio Grande do Sul após a mudança do regime imperial. Esse projeto civilizatório era constituído por uma série de instituições criadas e mantidas por grupos de profissionais das respectivas áreas que ofereciam cursos superiores livres (SIMON, 2003, p. 49).

 

Aos vinte e dois dias do mês de abril de 1908, na cidade de Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul, no Salão Nobre da Biblioteca Pública do Estado [ 2 ] é assinado pelo Presidente do Estado, Dr. Carlos Barbosa e por nomes representativos da sociedade local [ 3 ] , a instalação da Comissão Central tendo como finalidade a implantação do nascente instituto. Como presidente da Comissão Central foi aclamado o nome do médico Olímpio Olinto de Oliveira (membro fundador da Faculdade de Medicina de Porto Alegre, cronista musical e incentivador de diversas sociedades musicais na cidade de Porto Alegre), como secretário, o Dr. Ezequiel Ubatuba e como tesoureiro, Guilherme Pfeiffer. Para apresentação de um plano de organização da sociedade foi designada uma subcomissão constituída pelos advogados Plínio Alvim e Joaquim Birnfeld que, conjuntamente com os Drs. Possidônio da Cunha, Ezequiel Ubatuba e coronel Carlos Campos foram responsáveis pela elaboração dos estatutos do nascente Instituto. Os estatutos foram publicados no dia 22 de agosto de 1908 no jornal “A Federação” e inscritos no dia 28 do mesmo mês sob nº 90 no Registro Geral de Hipotecas. Em seu parágrafo único, o estatuto esclarece a organização do Instituto e o sistema de funcionamento:

 

Este ensino será feito mediante cursos sistematizados, formando dois grupos ou seções distintas: a Escola ou Conservatório de Música, compreendendo a teoria da música, a composição e a música vocal e instrumental; a Escola de Artes, compreendendo a pintura, a escultura, a arquitetura e as artes de aplicação industrial .

 

 

O artigo terceiro do estatuto explicita que “[...] cada uma das duas escolas será dirigida por um diretor efetivo e um conselho técnico e ambas as escolas estarão subordinadas à Direção do Instituto de Belas Artes”.

Assumindo o Instituto de Belas Artes como diretor Olinto de Oliveira permaneceu no cargo de 1908 até o ano de 1919, quando se transferiu para o Rio de Janeiro, sendo responsável pelo impulso inicial do nascente instituto e na obtenção de um primeiro reconhecimento público da instituição no ensino da música e das artes.

 

 

 

 

(FIG. 2 )- o médico Olinto de Oliveira, primeiro diretor do Instituto de Belas Artes do RS (1908-1919).

 

Na constituição do capital inicial, segundo Oliveira, foram organizadas listas de contribuições de assinaturas distribuídas pelo Estado do RS, cada uma representando a quantia de 50$000 com direito a diploma de sócio do Instituto (OLIVEIRA 1912, p. 7). Arrecadadas 450 contribuições, estas foram somadas às verbas de 12.000$000 do orçamento estadual do ano de 1909 destinadas pelo Presidente do Estado, Dr. Carlos Barbosa. Como as verbas arrecadadas não foram suficientes para a compra de um prédio próprio, foi arrendado pelo valor de 150.000$ 000 mensais (cento e cinqüenta mil réis), por um período de três anos, a contar do dia 1º de maio de 1909, um sobrado situado na Rua Senhor dos Passos, número 58, centro de Porto Alegre, conforme mostra a figura nº 3:

 

 

 

(FIG. 3) – Primeiro prédio do Instituto Livre de Belas Artes do RS.

 

 

Este sobrado pertencia anteriormente a uma sociedade maçônica alemã, sendo seu proprietário o Sr. W. Klappert, conforme afirma Oliveira (ibid). O sobrado onde funcionava o Instituto possuía três pavimentos: a secretaria do Instituto localizava-se no porão; no primeiro andar havia um auditório com capacidade para 300 pessoas, além de duas salas utilizadas para aulas pelo Conservatório de Música, o último andar era destinado a aulas de esculturas.

 

 

(FIG 4) – Auditório do antigo sobrado do Instituto de Artes

 

(FIG 5) – Atelier de escultura do antigo Instituto

 

 

Após realizar melhorias na conservação do prédio e instalada luz elétrica, foram adquiridos móveis – provenientes da sociedade maçônica - e comprados dois pianos de armário Schiedmayer do Sr. Ad. Muller por 3:000$000 (OLIVEIRA, 1909, p. 5).

A tesouraria foi instituída em julho de 1908, estando sob responsabilidade do Sr. G Pfeiffer (diretor do Banco Alemão em Porto Alegre). O balanço financeiro de receitas e despesas do Instituto de Belas Artes referente ao período de 16 de julho de 1908 a 22 de abril de 1909, aponta a seguinte situação financeira:

 

RECEITAS

DESPESAS

Contribuições------------35:650$000

Juros---------------------------227$200

Donativos---------------------319$000

 

 

 

Total ------------------------36:196$200

Projeto para diploma de sócios--------------80:$000

Ordenado ao guarda-livros-------------------200$000

Diplomas e estatutos---------------------------190$000

Impressos ------------------------------------------79$500

Diversas contas -----------------------------------18$500

Balanço-----------------------------------------35:628$200

Total---------------------------------------------36:196$200

Fonte: (GRÜNEWALD, apud OLIVEIRA, 1912, p. 44).

 

Já no relatório financeiro referentes aos anos de 1909-1910, primeiro ano efetivo de aulas no Conservatório de Música [ 4 ], observamos um aumento em itens de receitas e despesas onde já aparecem rubricas detalhadas que nos permitem vislumbrar algumas atividades desenvolvidas no primeiro ano de funcionamento: afinações de piano, despesas com anúncios, programas musicais e concerto, atividades de encerramento de aulas, receitas advindas de espetáculos musicais e de aluguel de sala. No item “despesas” o balancete revela os gastos com a remuneração dos professores e de funcionários. No primeiro ano os honorários dos professores foram estabelecidos por hora, a uma média de 10$000 réis por hora de lição. Na compreensão de Oliveira, esse valor “[...] poderia variar segundo o mérito do professor, a importância do curso e o número de alunos a atender” (ibid).

 

RECEITAS

DESPESAS

Saldo em 22 de abril de 1909----------35:628$200

Contribuições-------------------------------11:050$000

Subsídios do Governo -------------------17:000$000

Subsídios da Intendência ----------------2:000$000

Matrículas-------------------------------------3:710$000

Produto de espetáculos-------------------1: 183$250

Leilão de 2 animais----------------------------331$000

Aluguel de sala --------------------------------270$000

Donativos------------------------------------------85$000

Juros ------------------------------------------2: 154$600

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Total ------------------------------------------73:412$050

Folha de pagamentos

Professores-----------------------------------5:684$000

Escola de Arte-------------------------------1: 355$000

Escriturário, zeladora e contínuo----------540$000

2 Pianos ---------------------------------------3:000$000

Aluguel de casa-----------------------------1: 705$000

Luz elétrica --------------------------------------467$950

Ordenado ao guarda livros------------------360$000

Conserto do prédio--------------------------1:581$000

Instalação de luz elétrica---------------------359$600

Cobrança de títulos-----------------------------48$000

Anúncios e programas -----------------------159$800

Telefone------------------------------------------100$000

1 Toilette-----------------------------------------100$520

Encerramento de aulas----------------------265$000

Compostura da casa -------------------------625$000

Pintura da casa---------------------------------220$000

1 armário -----------------------------------------52$000

Artigos para escritório-------------------------220$700

Concerto-------------------------------------------35$000

Afinação de pianos -----------------------------16$000

Diversas contas -----------------------------1:615$800

Balanço---------------------------------------54:901$680

Total: -----------------------------------------73:412$050

Fonte: (OLIVEIRA, 1912, p. 46).

 

Também este balancete aponta receitas arrecadadas de contribuições de voluntários, matrículas e subsídios do Governo e da Prefeitura (Intendência) permitindo mesurar a importância dos subsídios do Governo do Estado - através da iniciativa do Presidente Carlos Barbosa - no apoio à nascente instituição. Nos anos seguintes as subvenções do Governo Estadual e da Prefeitura somaram a seguinte quantia:

 

SUBSÍDIOS GOVERNAMENTAIS AO INSTITUTO DE BELAS ARTES DO RS

Anos

1909

1910

1911

1912

Governo Estadual

12:000$000

20:000$000

25:000$000

25:000$000

Prefeitura

2:000$000

2:000$000

2:000$000

3:000$000

Fonte: (OLIVEIRA, 1912, p. 19).

 

A secretaria administrativa do Instituto ficou a cargo do Sr. Ezequiel Ubatuba. Para apoiar as atividades de secretaria foram criados cargos administrativos: escriturário (primeiramente ocupado pelo Sr. Luiz Gonzaga da Cunha, residente no edifício e com ordenado de 110$000 réis); o cargo de zeladoria (sob responsabilidade da Sra. Rachel Taches da Cunha, com ordenado de 40$000 réis) e o cargo de servente (com ordenado de 40$000 réis). O espaço oferecido pelo pequeno sobrado de três andares, apesar de não ser o ideal tendo em vista a precariedade das instalações (como, por exemplo, a ausência de isolamento acústico e o reduzido número de salas para aulas práticas) revela a tenacidade e envolvimento do corpo docente e diretivo em consolidar uma instituição oficial de ensino das artes no estado do Rio Grande do Sul. Idealizado como uma sociedade particular e dependente das taxas de matrículas arrecadadas pelos alunos - formado em sua grande maioria por mulheres - o Instituto de Belas Artes dependia principalmente dos valores repassados pelo Governo do Estado e da Prefeitura Municipal para cobrir suas despesas. Finalmente no ano de 1913 o sobrado foi adquirido pelo Instituto por 30 contos de reis - conforme consta na ata da Comissão Central do dia 04 de abril de 1913 - representando uma maior estabilidade à nascente instituição.

Quanto à organização da Biblioteca do Instituto, Oliveira relata:

 

A bibliotheca do Instituto é ainda muito escassa e de todo insufficiente. Como instrumento de cultura de primeira ordem não só para os alumnos, como para a população, conviria desenvolvel-a activamente, provendo-a pelo lado da música de numerosas collecções de clássicos e de bons compositores modernos e de obra e revistas de theoria, de critica e de litteratura musical [...]. Fiz há pouco tempo acquisição, em condições vantajosas, pela quantia de 300$000, de um lote de musicas impressas de piano a 2, 4 e 8 mãos, córos, duos, trios e quarttetos instrumentaes e musica de orchestra, toda escolhida dos melhores auctores antigos e modernos para iniciar a formação da bibliotheca do Conservatório. Desta collecção já se tem utilisado os professores para o estudo e principalmente para as audições publicas dos alumnos (OLIVEIRA, 1912, p. 19).

 

 

iii – O Conservatório de Música do Instituto de Belas ArteS

 

No dia 05 de julho de 1909, Olinto de Oliveira, diretor do Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul, inaugura em cerimônia solene o Conservatório de Música, contando com a presença de representante do Presidente do Estado, membros da diretoria e Comissão Central do Instituto, professores, alunos, imprensa e sociedade local. Em 1º de março de 1910 Olinto de Oliveira nomeia como diretor-técnico do Conservatório de Música, o músico José de Araújo Vianna [ 5 ], pianista e compositor, fundador e incentivador de sociedades musicais locais com destacadas atuações no meio musical local e na capital da Republica (Rio de Janeiro). A escolha de Olinto de Oliveira por Araújo Vianna como diretor do Conservatório de Música deveu-se, além dos fatos acima citados, à sua formação no conservatório de Milão e as constantes viagens realizadas por ele à Europa, trazendo com isso prestígio ao recém inaugurado Conservatório.

 

 

(FIG 6) - José de Araújo Vianna, primeiro diretor do Conservatório de Música.

 

Araújo Vianna permaneceu no cargo de diretor técnico do Conservatório até 15 de julho de 1910, quando se licenciou por motivos de doença vindo a falecer no Rio de Janeiro em 1916. Mesmo afastado de suas funções, Vianna continuou a colaborar na consolidação da instituição. De 1909 a 1943 a direção do Conservatório de Música foi exercida pelos seguintes professores: Araújo Vianna, Henri Penasse, Guilherme Fontainha, José Joaquim de Andrade Neves e Tasso Correa.

 

IV – Cursos e estrutura curricular

 

Em 1909 os cursos oferecidos pelo Conservatório de Música compreendiam teoria da música, composição, canto, instrumentos musicais (piano, instrumentos de arco e de sopro) além de aulas de italiano. Conforme Oliveira, no primeiro ano de funcionamento do conservatório:

 

A admissão de alumnos foi um tanto irregular neste primeiro anno, não só quanto ao tempo de inscripção que se prolongou sem praso fixo, como em relação ás habilitações, que foram apreciadas summariamente pelos professores. [...] No correr do anno foi se regularisando o que houve de tumultuario na admissão, transferindo-se alumnos de uns para outros cursos ou series, conforme os graus de adiantamento. [...] Comtudo, o limitado tempo de estudo e as difficuldades da organisação deste primeiro anno lectivo não permittiram terminal-o por exames regulares. Ficou resolvido encerrar o anno escolar com uma audição publica, que teve logar no salão grande do Conservatorio, em 27 de dezembro, ás 8 horas da noute, com um programma variado, em que tomaram parte todos os alumnos, nos córos, solfejos, e sómente os mais adiantados, nos solos ( Oliveira, 1912 , p 21).

 

Esses percalços iniciais do conservatório devem ser entendidos dentro do difícil contexto de organização exigida para uma instituição recente, sendo sanados nos anos seguintes. Quanto ao programa de estudos para os cursos foi provisoriamente esboçado tendo como base a organização curricular do Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro, além de sugestões dos professores do Conservatório. Essa vinculação à organização curricular do Instituto Nacional de Música seguida pelo Conservatório pretendia, além de oferecer uma referência para os professores, estabelecer uma diretriz em busca de estabilidade e reconhecimento institucional, espelhando-se no instituto da capital federal e no prestígio que este gozava.

O corpo de professores do conservatório foi estabelecido por Olinto de Oliveira por critérios pessoais procurando “[...] os melhores elementos desta capital” ( Oliveira, 1912, p. 5). No primeiro ano, as matérias do Conservatório foram distribuídas conforme a seguinte organização, duração e professores responsáveis:

 

 

1ªCadeira

Teoria elementar da música, primeiros solfejos

Um ano

Profa. Lili Hartlieb

2ª Cadeira

Solfejo e canto coral

Dois anos

Prof. Murillo Furtado

3ª Cadeira

Canto

Seis anos

Profa.Olinta Braga

4ª Cadeira

Piano

Nove anos

Prof. João Schwartz Filho

5ª Cadeira

Violino e outros instrumentos de arco

Oito anos

Prof. Matias Pedro Amadeu Lucchesi

6ª Cadeira

Instrumentos de sopro

Três anos

Prof. Biagio Messina

7ª Cadeira

Harmonia e composição

 

Prof. José de Araújo Vianna

8ª Cadeira

Italiano

Um ano

Prof. José Ricaldoni

Fonte: (OLIVEIRA, 1912, p 20).

 

Conforme Oliveira (ibid.), a inauguração dos cursos realizou-se em 5 de julho de 1909; com exceção das aulas de harmonia e composição para qual não se inscreveram alunos, todas as outras funcionaram regularmente até o fim do ano, sob direção dos respectivos professores. O quadro de professores do Conservatório contava com estrangeiros ou músicos locais com formação musical no exterior, muitos deles estabelecidos em Porto Alegre no final do século XIX. Conforme aponta Rodrigues:

 

O número de músicos que vão estudar na Alemanha é significativo para explicar as influências da formação alemã no cenário educacional / musical porto-alegrense, principalmente quando verificamos que os músicos estrangeiros que aqui se estabeleceram no final do século XIX eram em sua maioria italianos. Ao mesmo, percebemos que, desses músicos, somente um buscou aperfeiçoamento na França, no Conservatório de Paris (RODRIGUES, 2000, p. 104).

 

Quanto aos honorários e carga horária dos professores estes assim se apresentavam:

 

 

Professores

Carga horária

Remuneração

Profa. Lili Hartlieb

1 ½ hora

80$000

Prof. Murilo Furtado

1 hora

120$000

Profa.Olinta Braga

1 ½ hora

120$000

Prof. Matias Pedro Amadeu Lucchesi

1 ¼ hora

95$000

Prof. Biagio Messina

1 ½ hora

80$000

Prof. João Schwartz Filho

1 hora

160$000

Fonte: Instituto de Artes, sd, p. 24.

 

 

Quanto à freqüência, no primeiro ano de existência (1909) o Conservatório de Música contava com 75 (setenta e cinco) alunos matriculados, dentro os quais três alunos com bolsa de estudo. No ano seguinte observa-se uma procura maior em alguns cursos, alcançando o número de 93 (noventa e três) alunos matriculados. Segundo Oliveira ( apud CORTE REAL, 1984, 245), até o ano de 1912 o Conservatório de Música teve um total de 321 (trezentos e vinte e um) alunos matriculados.

 

NÚMERO DE ALUNOS DO CONSERVATÓRIO (1908-1912)

 

Anos

Pagantes

Gratuitos

Total

1909

72

3

75

1910

90

3

93

1911

69

5

74

1912

67

12

79

Total

298

23

321

Fonte: CORTE REAL, 1984, p.245.

 

Quanto às taxas de matrículas para os alunos foram adotados os seguintes valores para o ano de 1909: 10$000 para os cursos de teoria e solfejo e 50$000 os cursos de canto, instrumentos e harmonia.

Em 1910, foram realizadas modificações na estrutura curricular aconselhadas por Araújo Vianna como a eliminação da cadeira de italiano do currículo pela pouca procura e freqüência de seus alunos. A cadeira de Teoria elementar foi incluída no primeiro ano de Solfejo passando, assim, a constituir uma cadeira à parte, sob responsabilidade da Professora Lili Hartlieb e continuando o segundo ano de Solfejo e Canto coral com o Professor Murillo Furtado. Devido a grande demanda, as cadeiras de Piano e Violino foram desdobradas, sendo convidado para a segunda cadeira de piano o Professor Mário La Mura, e para a segunda cadeira de violino o Professor Oscar Simm. Em função da irregularidade da freqüência de alunos, o curso de “instrumentos de sopro” foi extinto nesse ano e, somente em 1919 foi criado um curso de flauta, a cargo do Professor José Joaquim Andrade Neves. Porém, na visão de Olinto de Oliveira e de Araújo Vianna, ainda faltava ao Conservatório um professor que pudesse dar maior visibilidade à instituição perante a sociedade local e com isso atrair maior número de alunos. Para atingir tal objetivo decide contratar um professor europeu para os cursos de piano. Em final de 1910, aproveitando viagem de Araújo Vianna à Paris para tratar da saúde, Olinto encarrega-o de encontrar este professor. Embora não tenha conseguido tal feito, Araújo Vianna incumbe o violinista patrício Chiaffiteli, então residente na capital francesa, de encontrar tal professor. Pouco tempo após, Chiaffiteli afirma ter encontrado na pessoa do pianista de origem belga Henri Penasse o perfil desejado e que “... já dera perante aos Conservatórios de Verviers e de Paris, as melhores provas de sua competência”. (OLIVEIRA, 1912, p. 30). A opção de contratar um professor francês, realizada por Olinto e Araújo, atesta a forte influência que a França exercia no início do século XX no mundo artístico, particularmente, no Brasil. Ao desembarcar em Porto Alegre no dia 15 de julho de 1911, Penasse compromete-se a lecionar piano, solfejo, canto coral, violoncelo, ou ainda “... outras disciplinas musicais”. Personagem importante na reestruturação do Conservatório e sucedendo Araújo Vianna como diretor técnico do Conservatório (1911-1916), Penasse reelabora programas de ensino e métodos a serem adotados, incentivando principalmente o repertório musical francês e europeu além de formular diretrizes para o curso de Canto Coral e estabelecer um controle rígido sobre alunos faltosos. Penasse ainda estabelece a prática de concursos públicos no Conservatório, precedidos de provas eliminatórias e divididos em cursos elementares (para iniciantes) e superiores (para estudantes avançados) onde se destacavam menções especiais para alunos-destaque. A sistemática adotada por Penasse revela forte influência dos conservatórios franceses de ensino musical, fatores que influenciaram e ajudaram a transformar a realidade de ensino musical local.

 

CONCLUSÃO

 

Criada como uma instituição particular de ensino das artes e da música e inserida em um projeto republicano de desenvolvimento e progresso da sociedade do início do século XX, o Instituto Livre de Belas Artes foi a primeira instituição de ensino artístico e musical do Rio Grande do Sul a oferecer cursos superiores continuados na área artística e musical. Sua influencia foi fundamental para que o ensino artístico e, particularmente, o ensino musical se consolidasse no Estado do Rio Grande do Sul no início do século passado. A partir do surgimento e consolidação dessa instituição, diversos conservatórios musicais espalharam-se pelo estado na década de 20, consolidando definitivamente o ensino musical formal no estado do Rio Grande do Sul.

Notas

[1] Agrupações musicais mistas com instrumental geralmente constituído por violões, bandurrias, mandolas, bandolins entre outros instrumentos. Nota dos autores.

[2] Então situada a Rua Duque de Caxias, esquina com a Rua Marechal Floriano, centro de Porto Alegre.

[3] Olinto de Oliveira e Joaquim Birnfeld (médicos), Rodolpho Ahrons (engenheiro), Plínio Alvim (advogado), Plínio Alvim (dentista e farmacêutico), José Montaury (intendencia municipal), Possidônio Cunha (industrial), Joaquim Birnfeld (magistratura), Gonçalves de Almeida e Caldas Júnior (imprensa), o coronel Carlos Campos (exército), o coronel Carlos Pinto (brigada), o capitão-tenente Octávio de Lima e Silva (armada), José Gertum (comércio), João Petersen (operários) Ambrósio Archer, José Morini e G. Pfeiffer (estrangeiros), Araújo Vianna (músico), Libindo Ferraz (pintor), Aurélio de Bittencourt (funcionário), Ezequiel Ubatuba (secretário do Presidente do Estado) e pelas senhoras Olinta Braga, Amália Iracema e Julieta Felizardo Leão. FREITAS E CASTRO, Ênio de. A Música no RGS na primeira metade do século XX. In: BECKER, Klaus (org.). Enciclopédia Riograndense . 4º vol. Canoas: ed. Regional, 1957. p. 336-358.

[4] Note-se que, fundado o Instituto e organizado em seções - o conservatório de música e a escola de artes - a primeira seção representava grande parte do professorado e do número de alunos. A escola de artes foi fundada no ano de 1910, através iniciativa do professor Libindo Ferras.

[5] José de Araújo Vianna (1871-1916), pianista e compositor. Foi um dos fundadores e incentivadores do Instituto Musical Porto Alegrense (1896) e, posteriormente, do Club Haydn (1897), participando ativamente da vida artística da cidade de Porto Alegre na virada do século XIX para XX.

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CORTE REAL, Antônio. Subsídios para a história da música no Rio Grande do Sul . 2ª ed. rev e ampl. Porto Alegre: Movimento, 1984.

DAMASCENO, Atos. Palco, Salão e Picadeiro em Porto Alegre no século XIX . Porto Alegre: Globo, 1956.

FERREIRA FILHO, Artur. História Geral do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1965.

FREITAS E CASTRO, Ênio de. A Música no RGS na primeira metade do século XX . In: BECKER, Klaus (org.). Enciclopédia Riograndense . 4º vol. Canoas: ed. Regional, 1957.

INSTITUTO DE ARTES. Acervo Histórico: os dez primeiros anos . Porto Alegre: CPG em Música da UFRGS, s.d.

LAZAROTTO, Danilo. História do Rio Grande do Sul . Porto Alegre: Sulina, 1971.

LUCAS, Maria Elizabeth. Classe dominante e cultura musical no RS: do amadorismo à profissionalização. In: RS: Cultura e Ideologia . Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980.

OLIVEIRA, Olímpio Olinto de. Relatórios de 1909 a 1912 do Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1912.

RODRIGUES, Claudia Maria Leal. Institucionalizando o ofício de ensinar : estudo histórico sobre a educação musical em Porto Alegre (1877-1918). Porto Alegre, 2000. 236 f. Dissertação (Mestrado em Música). Programa de Pós-Graduação em Música. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

SIMON, Círio. Etapas e contribuições do Instituto de Artes da UFRGS na constituição de expressões de autonomia no sistema de Artes Visuais do RS. Porto Alegre, 1999.Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

 

 

*Leonardo Loureiro Winter - Professor de flauta transversal, de música de câmara e do Programa de Pós Graduação em Música da UFRGS, Leonardo atuou como solista com as Orquestra de Câmara do Teatro São Pedro (OCTSP), da Orquestra da ULBRA, da Orquestra Unisinos, da Orquestra Sesi-Fundarte e Orquestra de Câmara de Blumenau bem como com as Orquestras Sinfônicas de Porto Alegre (OSPA), da Universidade Federal da Bahia (OSUFBA) e Orquestra Barroco na Bahia. Como camerista tem atuado em recitais no Brasil, Argentina e Suíça em diferentes formações e na estréia de novas obras. Integrante da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre desde 1990, têm atuado como músico convidado de diversas orquestras. Doutor em Execução Musical tem publicado artigos em revistas especializadas enfocando o repertório brasileiro para flauta, performance , musicologia e análise musical.

 

*Luiz Fernando Barbosa Junior - Bolsista de Iniciação Científica FAPERGS sob orientação do professor doutor Leonardo Winter e bacharelando em Música – Flauta Transversal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), também estudou com Raul Costa D´Ávila e Artur Elias Carneiro na Universidade Federal de Pelotas (UFPel/RS) e no Conservatório de Música Pablo Komlós em Porto sssAlegre/RS, respectivamente. Atualmente é flautista da Orquestra de Sopros de Caxias do Sul/RS, Orquestra Sinfônica do SESC/RS e Banda Sinfônica de Triunfo/RS. De 2005 a 2007 foi professor de Flauta Transversal na Escola de Música do Instituto Popular de Arte-Educação (IPDAE). Atua também como camarista apresentando-se em diversas formações. Participou de cursos e masterclasses em flauta com os flautistas Alain Daboncourt (França), Curt Schroeter (Itália), Danilo Mezzadri (EUA), Kathleen Chastain (França), Lucas Robatto (Brasil), Michael Faust (Alemanha), Michel Bellavance (Suíça), Michel Debost (França), Sérgio Barrenechea (Brasil).