Revista eletrônica de musicologia

Volume XI - Setembro de 2007

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O processo de produção musical na indústria fonográfica:
questões técnicas e musicais envolvidas no processo de
produção musical em estúdio

 


Frederico Alberto Barbosa Macedo (UDESC)


Resumo: Buscamos neste artigo descrever o modo como o processo de produção musical em estúdio desenvolveu-se, paralelamente ao surgimento das diversas tecnologias de gravação, produção e reprodução sonora, até estabelecer-se nas fases hoje praticadas pela indústria fonográfica. Definimos inicialmente os papéis do produtor fonográfico e do engenheiro de som, figuras fundamentais neste processo. Descrevemos, em seguida, cada uma de suas fases: pré-produção, gravação, edição, mixagem e masterização. Explicamos algumas técnicas de produção atualmente utilizadas, discutindo suas vantagens e desvantagens, levando em consideração os resultados musicais desejados e a concepção artística e musical que se tem em mente. Para isto, utilizamos referências diversas, entre elas Bahia (1998a, 1998b), Burgess (2002), Dias (2000), Vidal (1999), Monteiro (1999) e Martin (2002). Em seguida discutimos algumas importantes questões de natureza musical, que influenciam o modo como o processo de gravação deve ocorrer, explicando alguns fatores musicais e estilísticos que devem ser levados em consideração ao se gravar estilos baseados na performance grupal, como a música clássica e o jazz. Em seguida explicamos alguns procedimentos específicos utilizados na produção de música eletrônica, usando, entre outras referências, Schrank (2002). Por fim, concluímos com algumas observações referentes às transformações trazidas pelas diversas tecnologias no processo de produção sonora, acentuando, especialmente, a fragmentação do processo em várias fases e o surgimento de inúmeros agentes envolvidos na produção e na tomada de decisões referentes ao trabalho que está sendo criado. Chamamos a atenção, também para a diversidade de técnicas hoje disponíveis e para a necessidade de sua adequação à concepção musical que se tem em mente para se chegar a bons resultados.


Introdução

O processo de produção em estúdio sofreu diversas modificações ao longo da história da indústria fonográfica, estando intimamente ligado ao desenvolvimento das tecnologias de produção e reprodução do som. Inicialmente, este processo consistia no mero registro de uma performance. As possibilidades de manipulação do material gravado praticamente não existiam e o resultado final dependia, em última análise, da capacidade dos músicos e cantores de realizar uma boa performance.

Com o surgimento da fita magnética, o processo de gravação foi se tornando cada vez mais dependente de operações realizadas após o registro do som. Em primeiro lugar, permitiu que se fizessem edições de gravações realizadas em diferentes momentos, selecionando os melhores trechos de cada take,[1] para montar a versão definitiva. O próximo passo foi dado pelo surgimento do overdub – ou overdubbing –, técnica que possibilita “gravar um novo material, ao mesmo tempo que se ouve (sem apagar) o material já gravado” (RATTON, 2004, p. 108). Em seguida vieram os gravadores multipistas, ou multitrack,[2] quepermitem que cada instrumento seja gravado independentemente. Esta técnica ofereceu uma grande flexibilidade ao processo de produção, possibilitando que várias decisões, antes tomadas durante a gravação, pudessem ser adiadas para outras fases do processo: a edição, a mixagem e a masterização.

Hoje a produção em estúdio se dá através de cinco fases bem definidas: pré-produção, gravação, edição, mixagem e masterização, realizadas através do trabalho conjunto de uma equipe de profissionais – produtores, cantores, instrumentis-tas, arranjadores, técnicos e engenheiros de som, cujos papéis comentamos a seguir.

O produtor e o engenheiro de som

O produtor coordena a equipe que trabalha em um projeto específico. Ele define a concepção musical do projeto e coordena sua realização. Quando contratado por uma gravadora, ele funciona como um intermediário entre esta e o artista. Quando é um profissional autônomo, ele intermédia a relação entre o artista e o mercado, ou entre aquele e as gravadoras que possam estar interessadas na sua contratação. Segundo Dias (2000, p. 92), o produtor precisa ter “conhecimento musical, do mercado, do público e, sobretudo, dos detalhes técnicos que poderão transformar um disco e um artista num produto musicalmente sofisticado, ou de sucesso”. Além disso, precisa ter habilidades especiais no trato com as pessoas. “O produtor é o catalisador na química que é coordenar pessoas em torno de um projeto”, afirma Bahia (1998a, p. 84).

O produtor trabalha diretamente com o técnico ou engenheiro de som, cujo papel é traduzir em som as idéias daquele, viabilizando tecnicamente suas concepções e observando sempre a qualidade da gravação. Nas gravadoras independentes e pequenos estúdios é comum o produtor e o técnico serem a mesma pessoa. Nas gravadoras e estúdios profissionais, as duas funções geralmente são desempenhadas por pessoas diferentes, o que libera o produtor para se concentrar nos aspectos propriamente artís-ticos da produção. As etapas técnicas – gravação, edição, mixagem e masterização – sempre neces-sitam do trabalho do engenheiro de som, e um mesmo profissional – em princípio – pode ser responsável por todas as fases, porém o mais comum hoje – pelo alto nível de especialização – é se utilizar técnicos diferentes para cada uma das fases da produção.            

A pré-produção

É a primeira fase da produção. Nela se desenvolvem todos os processos prévios para a execução do projeto artístico, que o transfor-marão, enfim, em um produto fonográfico. É uma etapa fundamental para o bom andamento de um projeto, pois é aí que o trabalho começa a tomar forma. Fazem parte dela:

A escolha do local de ensaio. Encontros com compositores. Audição e seleção de repertório. Concepção, criação e desenvolvimento dos arranjos [...]. Escolha do(s) estúdio(s) e do(s) técnico(s). Levantamento das técnicas ou tecnologias a serem empregadas no projeto [...]. Estimativa mais realista de custos. Esboço da estratégia e do projeto de marketing para o produto (BAHIA, 1988b, p. 80).

Basicamente, um estúdio precisa ter os equipamentos, o ambiente e o técnico adequados à realização do projeto ou de uma de suas fases. Projetos de música eletrônica, de música pop, de rock, de jazz ou de música erudita necessitam de equipamentos e salas diferenciadas. Além disso, para um mesmo projeto podem ser utilizados vários estúdios diferentes.

A pré-produção deve considerar os recursos orçamentários disponíveis para o, bem como definir os prazos de realização, lançamento, distribuição, divulgação e vendas. O mercado trabalha a partir de uma coordenação de diversos setores e profissionais, e para que tudo funcione bem, este planejamento deve ser feito e seguido de forma mais precisa e objetiva possível.

Gravação

Nessa fase a execução musical será transferida para a máquina de gravação. O mais importante é fazer uma captação do som com a melhor qualidade técnica e musical possível. Bons equipamentos, ambiente adequado e um bom técnico são essenciais. Também é fundamental conseguir que os músicos tenham uma boa performance, o que se consegue realizando um bom trabalho de pré-produção, a escolha adequada dos músicos e a criação de um ambiente favorável.

A fase da gravação pode ser realizada, hoje, de três maneiras diferentes: ao vivo, em overdub e através de computadores ou seqüenciadores. Diversos fatores devem ser levados em consideração ao se optar por uma delas, entre eles a instrumentação e os arranjos, a qualidade dos ambientes de gravação, a disponibilidade dos músicos e a própria concepção musical do projeto.

Gravação ao vivo

É a forma mais antiga. Nela, os músicos tocam juntos ao vivo e grava-se a performance do grupo. De acordo com Monteiro (1999, p. 89), “existem muitas formas de se gravar ao vivo no estúdio, e é importante compreendermos que o termo ao vivo diz respeito a um grupo de músicos tocando juntos ao mesmo tempo e, preferen-cialmente, avistando-se uns aos outros”.

Inicialmente, esse tipo de gravação era realizado com um único microfone captando todo o conjunto. Com o surgimento dos primeiros mixers [3] e da tecnologia estereofônica [4] tornou-se possível utilizar vários microfones ao mesmo tempo, mas, ainda com os músicos tocando juntos e com o registro sonoro sendo feito do conjunto. Com o surgimento dos gravadores multipistas, tornou-se possível a gravação do conjunto ao vivo, com cada um dos instrumentos utilizando diferentes pistas de gravação. Monteiro (1999, p. 90) considera como vantagem desta técnica o fato de que ela preserva “toda a mágica e espontaneidade, além de oferecer durante a mixagem toda a flexibilidade de que o produtor e o engenheiro necessitarão para tratar individual-mente a voz e os instrumentos musicais”. Mas mesmo com a microfonação múltipla, e utilizando-se gravadores multipistas as possibilidades de edição ainda eram bastante limitadas, especialmente devido aos vazamentos.[5] Este limite foi superado com o surgimento do overdub e das gravações ao vivo realizadas em salas isoladas acusticamente.[6]

A vantagem da gravação ao vivo é que ela mantém a interação entre os músicos, o que dá à música uma atmosfera mais convincente e mais natural. “Quando tocam juntos no estúdio, mesmo sem se verem, os músicos da banda sentem, por empatia, as oscilações dinâmicas e de tempo que acontecem de forma orgânica”, afirma (2002, p. 87). Também Martin (2002, p. 340-1) observa que “engenheiros e músicos mais jovens estão chegando à conclusão de que a qualidade de uma gravação “ao vivo”, com vários instrumentos juntos, acrescenta tensão e emoção ao som, ainda que seja mais difícil lidar com ela”.

Gravação em Overdub

Surgiu como uma conseqüência da possibi-lidade de se realizar gravações adicionais sobre um material já gravado. A técnica – criada por Les Paul, em torno de 1950 – revolucionou o processo de produção em estúdio, definindo suas diversas fases. Agora, não era mais necessário que os músicos estivessem juntos em um mesmo ambiente para que a música fosse gravada. “Agora era possível captar múltiplos takes tocados pelos mesmos músicos. Músicos e instrumentos podiam ser gravados separada-mente, em momentos diferentes e em ambientes sonoros diferentes” (BURGESS, 2002, p. 3).

O controle individual sobre cada uma das partes gravadas é muito maior e podem-se realizar edições, processamentos e adição de efeitos para cada trilha considerada individualmente, bem como substituir partes já gravadas ou adicionar novas partes ao arranjo. Atualmente, a gravação em overdub é a mais utilizada na indústria fonográfica, especialmente em música pop, rock e música popular em geral.

Embora ao término da gravação muitas decisões referentes ao resultado final já tenham sido tomadas, é comum se gravar várias versões de um mesmo instrumento ou voz, ou mesmo versões alternativas de partes instrumentais e vocais específicas, que poderão estar ou não presentes na edição final.

Edição

A fase de edição consiste na seleção dos melhores trechos de cada uma das partes gravadas e na montagem desses trechos em uma versão final. Pode ser feita após a gravação de cada uma das partes, de um certo número delas ou de todas. Nesse processo podem ser realizados também outros procedimentos técnicos, como eliminação de ruídos e vazamentos, pequenas correções de ritmos fora do tempo, eliminação de trechos de silêncio e utilização de afinadores eletrônicos.[7] Martin (2002, p. 342) descreve os benefícios da edição em multipistas:

procuro guardar todas as execuções que puder. Às vezes, uma única frase maravilhosa surgirá de uma interpretação sem graça [...]. Se eu colocar cinco execuções lado a lado no multipista, poderei então selecionar a melhor parte de cada execução [...]. Dessa maneira, uma execução completa poderá ser montada como o produto de vários takes.

Com o surgimento do áudio digital, foram desenvolvidas várias ferramentas que ampliaram muito as possibilidades de edição do material gravado. Ao final da edição, têm-se as trilhas definitivas que serão utilizadas na versão final, prontas para serem mixadas.

Mixagem

Segundo Vidal (1999, p. 54), “é o processo pelo qual se busca o equilíbrio correto e a melhor combinação de timbres entre as diferentes fontes sonoras já gravadas”. Na mixagem se realiza o equilíbrio de volume entre os vários sons, juntamente com o tratamento e processamento individual de cada uma das trilhas, bem como o posicionamento de cada som no campo estéreo. Muitos dos recursos utilizados nesta etapa podem ser empregados na gravação, mas seu uso na mixagem permite um maior controle – e que se teste várias opções – antes de se chegar ao resultado definitivo.

O trabalho de mixagem envolve um nível considerável de conhecimento técnico e domínio no uso de vários equipamentos, processadores, efeitos, bem como um treinamento auditivo que possibilite perceber bem os resultados destes procedimentos sobre o som. Envolve também uma boa dose de sensibilidade artística e de conhecimento musical, influenciando não apenas o aspecto técnico da música como também seus aspectos artísticos. Por isso a mixagem deve ser acompanhada pelos responsáveis pelas tomadas de decisões referentes ao projeto, de modo a imprimir nele a concepção que se tem em mente.

Muitas vezes, o que se pretende em uma mixagem é uma clareza maior na gravação e um alto nível de fidelidade em relação ao som original. Em outros casos, busca-se alterar intencionalmente este som para que possa se adequar a alguma proposta estética os idealiza-dores têm em mente. Na mixagem, é importante que todos os elementos estejam a serviço de uma linguagem expressiva. Comparando a música com a pintura, Bahia (1988c, p. 34-35) observa que:

expressão [...] artística depende muito mais da composição como um todo do que do traço ou do realismo objetivo dos detalhes. Assim como encontramos a genialidade na perfeição matemática de Da Vinci, que retrata as imagens com perfeição e fidelidade, também a encontramos nos borrões e no movimento dos traços nervosos e rítmicos de Van Gogh [...] a genialidade também está presente nas imagens lisérgicas e não lineares de Salvador Dali.

A mixagem envolve uma grande dose de criatividade e pressupõe uma coerência com a proposta estética do artista. Mixar uma música pop, romântica, punk ou eletrônica envolve conceitos e procedimentos diferentes. Ao final da mixagem, a gravação multipistas é reduzida para o formato final no qual será comercializado, geralmente em dois canais (estéreo) que é, desde os anos 60, o padrão da indústria fonográfica.[8]

Masterização

A última fase do processo é a masterização, também chamada de pós-produção. É uma das etapas mais técnicas da produção em estúdio, e consiste na preparação das matrizes que serão enviadas à fábrica. A masterização deve levar em consideração a mídia final na qual a gravação será comercializada – disco de vinil, fita magnética, fita digital, CD, DVD –, pois cada uma delas possui características específicas.

Na masterização é definida a ordem das músicas, os fade in e fade out [9] e o intervalo entre as faixas. São utilizados os mesmos recursos da mixagem, só que, agora, ao invés de se trabalhar sobre as trilhas consideradas individualmente, trabalha-se sobre a gravação como um todo. Assim, busca-se uma homogeneidade de timbre, volume e sonoridade para todas as faixas.

A masterização é também um processo de finalização artística do trabalho realizado nas fases anteriores, e pode alterar radicalmente o resultado final. Por isso deve ser acompanhada pelos responsáveis pelo projeto. Ao final, tem-se a matriz, que será enviada para a fábrica para que seja reproduzida em série.

Algumas considerações referentes ao estilo musical

Essas cinco fases podem sofrer algumas variações, especialmente na gravação de música clássica e jazz. A produção de música eletrônica, por sua especificidade, será tratada adiante.

No caso da música clássica e outros agrupamentos acústicos – big bands, por exemplo –, o produtor tem um papel mais restrito que na música pop ou no rock. Se nestes estilos o produtor pode ter uma influência bastante grande na concepção artística do trabalho, naqueles ele tem uma influência bem menor; e seu trabalho consiste basicamente no registro da performance do músico ou do conjunto.

Devido ao caráter de espontaneidade pre-sente no jazz e à interação entre os músicos durante a execução ser fundamental, é recomendável que se grave ao vivo. Um dos mais importantes produtores de jazz, Orrin Keepnews (apud SHUKER, 2002, p. 226), observa: “creio que há casos em que acreditarei na validade de overdubbing e layering.[10] Mas também acho que o uso pode ser exagerado, afetando e reduzindo a espontaneidade, que é uma parte importante do jazz”.

Pode-se considerar que, em qualquer gênero musical, quando um produtor quer manter a interação entre os membros de um grupo musical, deve realizar a gravação ao vivo. Se a intenção é captar o ambiente original – uma sala de concertos, um teatro ou outro –, a gravação deve ser feita no local. Se a intenção é captar apenas a interação entre os músicos, a gravação pode ser feita em salas isoladas – preferencialmente mantendo o contato visual entre os músicos – ou tratadas com anteparos entre os músicos, para minimizar o vazamento. O nível de possibilidades de manipulação do material na fase da mixagem pode variar, dependendo do modo como é feita a gravação, sendo maior na gravação em salas isoladas, e menor em ambientes compartilhados por todos os membros do grupo.

A música eletrônica

Com o grande desenvolvimento das tecnologias de produção sonora, ocorrido após os anos 1950, surgiu a música eletrônica, que pode ser definida como aquela que se utiliza exclusivamente – ou em larga escala – de várias destas tecnologias.

A música eletrônica nem pode ser apropriadamente definida como um gênero, pois se caracteriza mais pelas tecnologias empregadas em sua produção do que por considerações de ordem estética. Assim, vários estilos musicais, que têm muito pouco em comum, são agrupados sob um mesmo rótulo por se utilizarem de forma aberta e evidente destes recursos.

As primeiras técnicas utilizadas pela música eletrônica [11] foram baseadas na manipulação de gravações realizadas em fita magnética: acele-ração, retardamento, retrogradação, recortes, edição, transposição e utilização de loops.[12] Esta uma das mais importantes da atualidade, através da qual, diversos loops – ou samples [13] – são sobrepostos uns aos outros a fim de realizar toda a parte de base – ou mesmo todas as partes –de uma música. Muitas vezes estes loops são extraídos de discos de outros artistas, procedimento bastante usual no rap e na música tecno em geral, sendo a técnica de mais utilizada pelos produtores DJs.

Outro procedimento básico na música eletrônica é a utilização de timbres gerados a partir de sintetizadores, em hardware ou software. Muitos destes funcionam como instrumentos convencionais, comandados por teclados ou outros tipos de controladores. Neste caso, são gravados como qualquer outro instrumento acústico ou elétrico, ou seja, baseados na performance do instrumentista. Podem também ser utilizados através da programação de seqüenciadores ou computadores.A utilização dos diversos timbres sintéticos, bem como a variação em tempo real de parâmetros de efeitos aplicados sobre estes timbres estão entre os principais procedimentos utilizados na produção de música eletrônica.

Um outro recurso fundamental é a utilização de seqüenciadores e baterias eletrônicas, que podem comandar sintetizadores e instrumentos eletrônicos diversos. Com estes equipamentos é possível a realização de efeitos e programações que não podem ser realizadas através da performance, ou que, mesmo que sejam possíveis, estejam fora da possibilidade de execução instrumental do programador.

O processo de produção da música eletrônica possui certas peculiaridades, não seguindo as etapas já clássicas da produção musical. De acordo com Schrank (2002, p. 56):

O que pode ser observado é que o processo de criação de uma canção eletrônica reúne edição, gravação e mixagem no mesmo momento [...] sua pós-produção é sempre necessária. Ela consiste em abrir a mixagem no computador e alterá-la com efeitos como cortes, viradas e filtros. Muitos momentos de uma música eletrônica são desenvolvidos desta maneira.

Isso acontece porque, ao contrário do que ocorre na música não-eletrônica, muitos dos efeitos mais interessantes não são efeitos propriamente musicais – no sentido de idéias melódicas ou harmônicas que chamam a atenção por si mesmas – , mas efeitos que surgem no processo de mixagem, como a aplicação de filtragem e a modificação de parâmetros de efeitos em tempo real. Burgess (2002, p. 33) observa que, “na dance music, as idéias de produção, as partes, os sons e a composição em si estão intimamente ligados”.

Conclusões

Dois aspectos importantes merecem ser men-cionados no desenvolvimento do processo de produ-ção em estúdio: a fragmentação em várias fases e o conseqüente surgimento de diversos personagens associados a este processo. Se até o final do século XIX o processo de produção e veiculação da música podia ser pensado a partir dos três agentes tradi-cionalamente associados ao fazer musical – o compo-sitor, o intérprete e o ouvinte – a partir do desen-volvimento das técnicas de produção em estúdio e de sua segmentação nas fases descritas, surgiram vários outros agentes associados ao trabalho de produção musical. Músicos, produtores, intérpretes, arranjadores, engenheiros de som, programadores, diretores artísticos, divulgadores e mesmo executivos de gravadoras, todos contribuem de alguma forma e interferem, em diferentes medidas nos processos de decisão que resultarão no trabalho final de produção. Esta multiplicação dos diversos agentes envolvidos na produção musical levou a um deslocamento das noções tradicionais de autoria, na medida em que, dependendo da influência de cada um destes agentes no processo de produção, muitas vezes eles reivindicam o reconhecimento de sua participação como uma sendo de natureza autoral. Isto explica por que, no seio da indústria fonográfica, o status de diversos personagens – produtores, intérpretes, arranjadores, músicos, engenheiros de som e, mais recentemente, os DJs – é similar ao status anteriormente atribuído apenas aos compositores ou grandes intérpretes

O processo de produção musical em estúdio se desenvolveu, por um lado, intimamente associado ao desenvolvimento das tecnologias de produção musical e, por outro lado, ao próprio desenvolvimento geral da música, de seus estilos, de suas concepções e de seus ideais estéticos. Se inicialmente a produção em estúdio se restringia ao registro de uma performance, hoje existem vários procedimentos técnicos e musicais que podem ser utilizados para se chegar ao resultado sonoro desejado, técnicas diversas a serem empre-gadas em função dos objetivos musicais e das concepções estéticas que se tem em mente. Desse modo, não podemos falar que existe um processo, ou uma técnica de produção adotada universalmente pela indústria fonográfica, mas, sim, que existem pro-cedimentos técnicos e rotinas de produção diversos, cuja utilização deve ser avaliada a partir dos objetivos musicais que se tem em mente. Nas palavras de Burgess:

Não existe uma forma correta ou incorreta de fazer discos. Existe, sim, uma forma apropriada e uma forma inapropriada de fazer um disco específico. [...]. A sonoridade e a atitude da produção precisa combinar com a sonoridade e a atitude da música. [...] o princípio geral afirma que a produção deveria estar totalmente coerente com o estilo do artista e o conteúdo da música e das letras (BURGESS, 2002, p. 97).

Notas


[1] “Gravação completa de uma música ou de uma parte de uma música. Equivale à tomada de uma cena de um filme” (OLIVEIRA In. BURGESS, 2002, p. 3 - N. do T.).

[2] “Gravador que pode gravar e reproduzir mais do que duas pistas (tracks) de áudio, simultânea e independentemente” (RATTON, 2004, p. 101),

[3] Mesas de som de múltiplas entradas que permitem o ajuste e o equilíbrio de várias fontes sonoras (microfones).

[4] “Sistema de reprodução sonora em duas vias (canais) separadas, posicionadas uma de cada lado do ouvinte, de forma a lhe dar a sensação de posicionamento espacial (linear) do som” (RATTON, 2004, p. 61).

[5] “Sons indesejáveis que são captados por um microfone. Exemplo: quando um microfone é posicionado em frente a um instrumento, e capta também o som de outros instrumentos no ambiente, esses outros sons são vazamentos” (RATTON, 2004, p. 150).

[6] Esta, uma das técnicas mais interessantes, pois preserva a interação entre os músicos, permitindo, também, edições e acréscimos posteriores.

[7] Processadores em hardware ou software que permitem a afinação de vozes desafinadas.

[8] Com o surgimento do sistema Surround os formatos com mais de dois canais chegaram ao mercado, sendo implementados, por exemplo, nos home theaters.

[9] “Ato de se aumentar/diminuir gradativamente o nível (volume) de um sinal de áudio. Muito usado em mixagens” (RATTON, 2004, p. 62). Os fade in e fade out são também utilizados na masterização, especialmente nos finais de músicas que terminam com o desaparecimento do som (fade out).

[10] Gravação em camadas, sobreposições.

[11] Mais precisamente, na música concreta francesa, uma corrente musical de vanguarda criada por Pierre Schaeffer nos anos 50. As mesmas técnicas foram utilizadas pelos compositores alemães da música eletrônica, mas, trabalhando apenas sobre sons gerados eletronicamente e armazenados em fita magnética.

[12] Trechos pré-gravados colocados em repetição.

[13] Loop amostrado digitalmente.


Referências

BAHIA. Mayrton. Projetando o CD: Parte 2: a pré-produção. Música e Tecnologia, v. 10, n. 78, fev. 1998a.

_____ A Arquitetura dos Espaços Virtuais: dimensões e sensações virtuais no tempo. Música e Tecnologia, v. 10, n. 81, mai. 1998b.

BURGESS, Richard J. A Arte de Produzir Música. Rio de Janeiro: Gryphus, 2002.

DIAS, Márcia Tosta. Os Donos da Voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. São Paulo: Boitempo, 2000.

GUEIROS Jr., Nehemias. O Direito Autoral no Show Business: tudo o que você precisa saber. Rio de Janeiro: Gryphus, 2005.

MARTIN, George. Produção Musical. In: MARTIN, George (org.). Fazendo Música: o guia para compor, tocar e gravar. Brasília: Editora da Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002.

MONTEIRO, Manny. De Volta para o Futuro: como nos velhos tempos. Música e Tecnologia, v. 11, n. 98, nov. 1999.

RATTON, Miguel. Dicionário de áudio e tecnologia musical. Rio de Janeiro: Editora Música e Tecnologia, 2004.

SCHRANK, Jomar. Be-a-beat! Gravação, Edição, Mixagem e Masterização da Música Eletrônica. Música e Tecnologia, v. 15, n. 130, jul. 2002.

SHUKER, Roy. Vocabulário de Música Pop. São Paulo: Hedra, 1999.

VIDAL, Rodrigo. Mixagem: acreditem em seus ouvidos. Música e Tecnologia. Rio de Janeiro, v. 11, n. 94, mar. 1999.

 

 

 

 

 

Frederico Alberto Barbosa Macedo é licenciado em Educação Artística - Música pela Universidade Federal de Goiás, Mestre em Música pela mesma instituição, professor da Universidade do Estado de Santa Catarina, criador e coordenador do Laboratório de Música e Tecnologia desta mesma instituição.